Viver nos grandes centros é cada vez mais incomportável devido à escalada do imobiliário e as cidades nacionais são disso reflexo. A globalização está a afetar o mercado, com cada vez mais investimento de empresas, fundos e capitais em edifícios nos grandes núcleos urbanos. E o poder de compra é mais influenciado pelo grau de urbanização do que pela distância ao litoral.
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É cada vez mais caro morar nas grandes cidades, a avaliar pelos sucessivos rankings. O do custo de vida, da consultora Mercer, aponta que Lisboa é a 83.ª cidade mais cara do Mundo para trabalhadores internacionais, uma subida de 23 lugares a que não é alheio o aumento do imobiliário, bens e serviços. Já no ano passado, a Economist Intelligence Unit apontava que a capital portuguesa era a 80.ª cidade mais cara do Mundo para viver.
Mas há muitos outros dados que se cruzam, quando se fazem contas. De acordo com o Fundo Monetário Internacional, por exemplo, Portugal foi o oitavo país a nível mundial onde os preços das habitações subiram mais no ano passado. Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) apontam que Lisboa é o concelho do país onde é mais caro arrendar, seguindo-se na lista Cascais, Oeiras, Amadora e Porto. Há dias, o INE revelou ainda que o poder de compra está cada vez mais concentrado nos centros urbanos.
O geógrafo Rio Fernandes, docente da Universidade do Porto (UP), diz que é preciso ter em atenção o efeito da dimensão. "Quanto maior a dimensão, maior a atração, maiores os valores do preço do solo", pelo que não é de estranhar que se tenha de abrir mais os cordões à bolsa em Lisboa, Porto e nas respetivas envolventes.
Verifica-se que há muito investimento de grandes empresas, fundos e capitais em edifícios. Isto que acontecia em décadas anteriores em cidades como Londres e Tóquio, hoje alargou-se e já chegou a Lisboa, Porto e outras
Também há cidades mais atrativas do ponto de vista da qualidade urbana, que oferecem maior nível de bem-estar, serviços, espaços verdes, universidades, comércio, entre outros. Voltando aos rankings, podemos ver que o da OCDE "coloca Aveiro e Évora, por exemplo, no topo, como sendo cidades melhores para viver do que outras maiores, como Lisboa e Porto", destaca Rio Fernandes.
O efeito da globalização, continua o geógrafo da UP, também pesa. "Verifica-se que há muito investimento de grandes empresas, fundos e capitais em edifícios. Isto que acontecia em décadas anteriores em cidades como Londres e Tóquio, hoje alargou-se e já chegou a Lisboa, Porto e outras". A isto, no caso luso, soma-se o efeito dos alojamentos locais (AL) para turismo, que "roubaram" habitações aos moradores nos centros e ajudaram à escalada dos preços.
Estes três fatores - a dimensão, qualidade urbana e capital internacional a investir - "têm feito com que o imobiliário nas cidades tenha vindo a aumentar significativamente, o que tem infernizado a vida a quem quer viver e comprar nas cidades", conclui.
As cidades mais atrativas têm pessoas mais qualificadas, com maior poder de compra, o que contribui para o aumento de preços
João Ferrão, geógrafo e investigador do centro de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, alerta para o efeito "bola de neve": quanto mais atrativas são as cidades, maior a desproporção entre procura e oferta, levando os preços a aumentar.
"As mais atrativas têm pessoas mais qualificadas, com maior poder de compra, o que contribui para o aumento de preços. Por isso, temos cidades a afastarem-se cada vez mais umas das outras" e há uma diferença grande entre "as que estão integradas na globalização e as mais excluídas".
Uma das formas de combater o problema pode passar pelo mercado de habitação. "O Estado pode intervir no mercado, criando habitação mais barata e rendas de valor social em casas já existentes. Podemos construir novas habitações privadas em que 10% são para entregar ao Estado (central ou local), para alojar famílias que não têm capacidade económica de aceder ao mercado normal", exemplifica Rio Fernandes.
A ideia está a ganhar peso aquém e além-fronteiras. Lá por fora, Berlim tem uma política de aquisição e abaixamento dos valores do solo, combatendo a especulação imobiliária. Barcelona não quer mais AL.
O especialista da Universidade do Porto considera que, para se intervir na regulação desta escalada de preços, também se pode atuar a nível dos transportes, sendo preciso "reforçar a acessibilidade e desvalorizar a mobilidade", ou seja, ter em conta que o acesso a muitas coisas, inclusive saúde e educação, é cada vez mais digital.
Atrair turismo e talento
Outra ideia é pesar bem a importância do talento e do turismo. "Penso que as cidades vão competir muito umas com as outras para atrair talento e turistas. Atrair talento significa serem mais inovadoras, mais criativas, mais produtivas. Atrair turistas significa serem mais competitivas do lado do consumo". Rio Fernandes defende que é "importante descentralizar, não concentrar excessivamente nem talento nem turismo, sob pena de termos hipervalorização de determinadas áreas e filas de turistas noutros sítios".
João Ferrão sublinha que os números do INE sobre o poder de compra revelam que a divisão já não se faz entre litoral/interior, mas depende muito do "grau de urbanização". Uma zona urbanizada "atrai as pessoas mais qualificadas, com poder de compra mais elevado, concentra serviços mais especializados", mesmo que esteja mais afastada da costa.
No caso português, há municípios que sistematicamente estão a baixar no ranking, reflexo da crescente suburbanização desqualificada
Há concelhos, alguns até das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, "que desceram no ranking nos últimos anos porque tiveram um processo de urbanização muito desigual, com polarização social muito forte. O valor médio baixa porque os segmentos menos qualificados e com menor remuneração pesam muito no conjunto do município", diz Ferrão.
Tanto a nível do sistema mundial das cidades, como a nível do poder de compra municipal, é preciso ter em conta a realidade estrutural, o que é conjuntural, como a pandemia e a rutura dos sistemas de abastecimento, e as dinâmicas de evolução.
"No caso português, há municípios que sistematicamente estão a baixar no ranking, reflexo da crescente suburbanização desqualificada a que estão a ser sujeitos", evidencia Ferrão, defendendo que é "preciso olhar para o sistema urbano como uma política estrutural do país".