Dois anos depois de começar a pandemia, tradições pascais vão regressar à rua nos moldes habituais.
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As três principais procissões da Semana Santa de Braga vão sair à rua, o compasso vai atravessar o rio Homem, em Amares, e o rio Minho, em Valença, e os três abades vão voltar a brindar em Viana do Castelo. Ao fim de dois anos de pandemia, as tradições da Páscoa regressam quase em pleno, para regozijo de párocos, mordomos, empresários e toda a comunidade que vibra com as celebrações da época.
Em Braga, as procissões da Burrinha, Ecce Homo e do Enterro do Senhor vão voltar ao formato original, com centenas de figurantes a desfilarem pelas ruas do Centro Histórico, entre 13 e 15 de abril. Nesses dias, são esperados milhares de visitantes e hotéis cheios.
Quatro novos barcos
Em Amares, o presidente da Junta de Fiscal, Augusto Macedo, diz que já está também a receber contactos de operadores turísticos interessados em trazer excursões para acompanhar o compasso a atravessar o rio Homem, na segunda-feira de Páscoa. Este ano, a freguesia investiu em quatro novas embarcações.
Ainda na segunda-feira de Páscoa, em Valença, o compasso também voltará a passar pelo rio Minho, onde decorre o Lanço da Cruz. Aqui, o pároco de Cristelo-Côvo segue numa embarcação até à fronteira espanhola para dar a cruz a beijar aos galegos, trazendo consigo o padre de Sobrado (Espanha).
No mesmo dia, em Viana do Castelo, regressa o encontro das cruzes e brinde da Mesa dos Três Abades, no Largo das Neves, que une as freguesias de Barroselas, Mujães e Vila de Punhe. Mais cedo, no sábado de Aleluia, para quebrar o jejum da Quaresma, o restaurante Quinta do Carvalho vai voltar a cozinhar o "bife da Páscoa". A tradição é conhecida por juntar centenas de homens à mesa.
Em Freixo de Espada à Cinta, a procissão dos Sete Passos, de origem medieval, já percorre a vila, todas as sextas-feiras, a partir da meia-noite.
Cruz sem beijo
O compasso pascal, que percorre as casas das famílias portuguesas, vai voltar a ser permitido, mas, este ano, a Conferência Episcopal pede que não haja o habitual beijo na cruz. O grupo que lidera o compasso também deverá ser reduzido e usar máscara.
Burrinhas sem Clemente
Clemente Alves, o coveiro de Braga conhecido por conduzir a burrinha na procissão de Quarta-Feira Santa, poderá não assumir o papel de S.José, este ano, devido ao seu estado de saúde. Mas a organização garante que o cortejo sairá à rua com uma burrinha, que deverá ser orientada pelo próprio dono do animal.
Do padre à mordoma, as celebrações não se fazem sem eles e os doces
Tânia Palmeira: "Ainda há pessoas que choram quando entramos"
Tânia Palmeira, professora com 45 anos, não esconde a felicidade por este ano poder voltar a carregar a cruz dos escuteiros no compasso que atravessa a freguesia de Gualtar, em Braga. Fá-lo há 25 anos e só o nascimento dos filhos e os últimos dois anos da pandemia interromperam uma tradição que começou quando ainda era muito jovem.
"Sempre tivemos uma cruz nos escuteiros e, então, costumavam perguntar quem queria ir no compasso. Eu ia sempre. Aos 14 anos comecei com o sino, depois passei para a água benta e, aos 19 ou 20 anos, já peguei na cruz", recorda Tânia Palmeira, agora, chefe dos escuteiros, tal como o marido, autor da cruz que carrega ao colo.
Levar este símbolo católico à casa das famílias de Gualtar é, para a professora, uma missão. "Levamos Cristo ressuscitado. A cruz significa isso. Vamos dar esperança, reconforto e as pessoas que nos recebem são muito acolhedoras. As pessoas estão felizes, têm as casas ornamentadas e asseadas para o Dia de Páscoa. Oferecem doces, salgados", conta, com um sorriso, lembrando os últimos anos, antes da pandemia, em que via casas cheias de gente.
E até mesmo os casais mais novos abrem as portas à tradição. "Ainda há pessoas que choram, quando entramos, o olhar brilha, mesmo nos jovens", refere a professora, lamentando que a covid-19 possa trazer este ano algum distanciamento. "Não sei se algumas pessoas vão ter receio de nos receber", admite, ressalvando que, além de não haver beijo da cruz, o compasso vai seguir com menos pessoas.
Sérgio Torres: "É um momento aglutinador da comunidade"
Quando Sérgio Torres chegou, há 23 anos, à paróquia de S. Victor não fazia ideia de que, na véspera da Páscoa, dali saía um cortejo bíblico que tinha uma burrinha como figura central. "Felizmente", diz, no ano 2000 choveu, o que lhe deu tempo para se inteirar de uma celebração que é um dos pontos altos da Semana Santa de Braga.
"Grande parte da minha vida foi passada como residente na freguesia de S. Victor. Mas, quando cheguei à paróquia, não sabia o que era a procissão da Burrinha", confidencia Sérgio Torres, que estudou no seminário e na Faculdade de Teologia, naquela freguesia, antes de ali ficar fixado como pároco.
Diz que estar numa igreja citadina "é diferente" de estar "numa aldeia". Há fiéis que vão e voltam, "porque há muitas paróquias onde escolher ir à missa", explica o padre de 51 anos. Mas certo é que, quando se aproxima o período da Páscoa, "há uma comunhão" à volta da procissão. "Do ponto de vista da comunidade, é um momento muito aglutinador. Há um lado emocional que faz falta à celebração da fé", descreve, sublinhando que "há muita gente" que se aproxima da paróquia, inclusive de outras freguesias.
"Começa a notar-se outra coisa, que são pessoas que pedem para ir na procissão, porque fizeram promessas", regozija-se Sérgio Torres, confiante que a pandemia não desmotivou a participação da comunidade na vida religiosa. E os sinais começam a aparecer, com muitos fiéis a pedirem para integrar o cortejo bíblico, este ano. "Decidimos que não vamos cortar figurantes", remata.
André Costa: "Há dias em que quase não vou à cama"
Massapães, bolinhas de amêndoa, línguas de gato, rosquinhas, casadinhos, paciências, castanhas de ovos, fidalguinhos, doces brancos e amarelos e centenas de pães de ló. Quando chega a época da Páscoa, André Costa, 32 anos, passa mais horas na centenária Doçaria de S. Vicente, em Braga, onde trabalha, do que em casa. Ali, confeciona mais de 400 quilos de doces de todas as variedades e 500 quilos de pães de ló para responder a todos os pedidos dos clientes.
"Na altura da Páscoa, há dias em que quase não vou à cama. Custa um bocadinho, mas ver a satisfação dos clientes também nos traz satisfação", relata o pasteleiro, que começou na profissão aos 14 anos, "por brincadeira". "Andava na escola, mas queria arranjar um part-time e comecei a trabalhar numa casa onde tinha um bom mestre pasteleiro. Comecei a ganhar o gosto e, depois, fui tirando cursos", recorda o jovem que, todos os dias, acorda de madrugada para encher as montras da Doçaria de S. Vicente, em pleno Centro Histórico de Braga.
André Costa confessa que são os doces conventuais, muitos característicos daquele estabelecimento, que lhe "dão mais prazer", mas está também sempre atento à pastelaria moderna. "Tento sempre inovar, estar um pouco à frente de outras casas", sublinha, enquanto enche a bancada com dezenas de doces de todas as formas e feitios, como tartes de fruta. "É tudo à base de produtos naturais", atesta, sob o olhar de Mara Campos, gerente da doçaria. "Quando vai ao balcão, há muitos clientes que gostam de lhe dar os parabéns", confidencia a responsável.
Glória Leite: "Gosto muito de receber gente em casa"
Os planos de Glória Leite passavam por ser mordoma da Páscoa de Fiscal, em Amares, em 2020, mas a pandemia trocou-lhe as voltas e aceitou esperar dois anos para cumprir um desejo antigo. O compasso que atravessa o rio Homem, ao som da Banda Musical de Cabreiros, é o ex-líbris de uma festa que só termina à noite, com fogo de artifício e um banquete oferecido pela mordoma.
"Antes de aceitar, perguntei às minhas filhas e a uma sobrinha se me ajudavam com os custos. O meu marido não queria participar, mas eu convenci-o", lembra Glória Leite, sublinhando que tinha quase tudo preparado para presidir a Páscoa em 2020, "quando entrou a pandemia" no país. "O senhor padre pediu para eu esperar até isto reabrir. Eu aceitei esperar até este ano. Se não houvesse Páscoa, ia desistir, porque já tinha cumprido a minha parte, já tinha feito certas despesas", conta a amarense, falando dos encargos com o sacristão e ornamentação da faixa que levará ao peito na segunda-feira de Páscoa, quando decorre o compasso.
É, também, Glória Leite que terá de decorar com flores a igreja e duas capelas, garantir o fogo de artifício e o lanche "para quem quiser entrar em casa". "Estou muito feliz. Sempre gostei muito mais da Páscoa do que do Natal, porque gosto muito de receber gente em casa e, na Páscoa, vamos todos a casa uns dos outros", sublinha a mordoma de 56 anos, convencida de que irá resistir à caminhada de um dia, a liderar o compasso. "Dizem que eu não vou aguentar, mas nem que ponha "spray" no joelho para aguentar as dores, hei de andar todo o dia", brinca.