Têm menos de 40 anos e escolheram a especialidade de Medicina Geral de Familiar por diferentes motivos. Sabem que, dependendo da região do país, poderá não ser a carreira mais atrativa para um jovem médico. Mas, como diz uma das clínicas, a diferença na vida de um utente pode acontecer num centro de saúde.
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Quando entraram em 2022 na Unidade de Saúde Familiar (USF) de Campo, em Valongo, um grupo de quatro médicas de família teve de construir uma relação de confiança com os utentes. "A minha lista de utentes teve vários médicos ao longo dos últimos anos. Diziam-me: 'Eu estou a contar-lhe tudo agora, mas da próxima vez já não é a doutora'", conta Teresa Patrício, de 36 anos. A clínica respondia-lhes: "Eu não tenho prazo para ir embora". Esta segunda-feira, 19 de maio, celebra-se o Dia Mundial do Médico de Família. Estima-se que, em Portugal, haja mais de 1,5 milhões de pessoas sem equipa de saúde familiar.
Magda Catarino, Mafalda Sequeira, Isabel Padrão Tadeu e Teresa Patrício juntaram-se ao médico Oleksandr Rodin, natural da Ucrânia, para formar a equipa clínica da USF de Campo, em 2022. Rodin já trabalhava no espaço quando ainda era uma unidade de cuidados de saúde personalizados (UCSP). Apesar das vagas por preencher em Medicina Geral e Familiar e do debate em torno da atratividade da especialidade, as quatro médicas - todas com menos de 40 anos - garantem que a diferença na vida de alguém pode ser feita num centro de saúde.
Melhorar a saúde através da prevenção
Nenhuma está alheia aos constrangimentos no serviço público de saúde e na profissão, até porque cada um dos clínicos da USF de Campo tem entre "1600 a 1700 utentes" nas suas listas. Sabem que o país funciona a diferentes velocidades na saúde. Todas tiveram experiências no interior de Portugal. Trabalhar num centro de saúde na região Norte não é o mesmo que trabalhar numa unidade de Lisboa e Vale do Tejo. "Em Lisboa, se os colegas estão a escolher trabalhar no privado, por alguma razão é. Talvez não seja uma especialidade atrativa em termos de ordenado, tendo em conta as rendas de Lisboa e a organização dos serviços", diz Teresa Patrício.
As quatro médicas escolheram a especialidade de Medicina Geral e Familiar por diferentes motivos. No caso de Mafalda Sequeira, durante o ano comum (período após o curso de Medicina em que experimentam diferentes especialidades), a médica de 36 anos dava por si a questionar "o que tinha acontecido àquela doente" que atendeu nas urgências. "Eu precisava de uma sensação de continuidade que só a Medicina Geral e Familiar tem", explica.
Isabel Padrão Tadeu, de 36 anos, gostava "de tudo" e conseguiu através da especialidade ter a flexibilidade necessária para fazer outras pós-graduações, nomeadamente na área da Medicina Estética. "Eu acho que todos os médicos chegam a uma altura que não querem fazer noites, nem fins de semana, a não ser que seja uma opção", admite. Já Magda Catarino, de 39 anos, considera que "o caminho para melhorar a saúde é a prevenção" e acredita que a "diferença é feita no centro de saúde". Teresa Patrício percebeu que ser médica de família a preenchia mais do que qualquer outra especialidade, mesmo que a primeira opção tenha sido, inicialmente, a Medicina Interna.
Paragem de autocarro e passadeira
O trabalho dos últimos três anos tem extravasado os gabinetes, numa verdadeira conceção de que a saúde e a prevenção para a doença não escolhem lugares e devem ser orientados por princípios de empatia e compreensão. "Se aquela pessoa me procura naquele momento, é porque precisa. E se eu perder cinco minutos ou mais hoje, vou ganhar meia hora para a próxima consulta", explica Teresa Patrício. Todas as semanas, a equipa da USF de Campo reúne para discutir casos clínicos, mas também para refletir sobre o que está a correr bem e o que pode ser melhorado.
As dificuldades dos utentes nem sempre são puramente clínicas. Situada na freguesia de Campo, em Valongo, a acessibilidade não é um ponto forte da USF, apesar de estar a cerca de 20 minutos do centro do Porto. "Quando cá chegamos, as pessoas não conseguiam sequer ter um autocarro a passar aqui. Para virem para cá, têm de ir primeiro ao centro de Valongo", conta a médica. Além de terem reunido com a câmara municipal, o grupo de clínicos incentivou a população a falar também com a autarquia. Uma paragem de autocarro foi colocada em frente ao centro de saúde e foi pintada uma passadeira.
"Eu acho que algo que beneficiava o nosso trabalho era ter menos utentes por lista, que houvesse mais médicos disponíveis, para nós nos focarmos também numa quantidade mais pequena de utentes", acrescenta Isabel Padrão Tadeu. Apesar de não poderem antecipar o que será o futuro do SNS, sabem que tem de ser "preservado". "É para todos e de forma gratuita. Se o vamos perder? Eu espero que não", aponta Teresa Patrício.
Pormenores
Vagas
O Ministério da Saúde abriu 579 vagas para recém-especialistas em Medicina Geral e Familiar. No concurso lançado em dezembro do ano passado, cerca de 70% das vagas ficaram por preencher.
Clínicos
Em março deste ano, mais de 1,5 milhões de pessoas não tinha médico de família atribuído. A região mais crítica é em Lisboa e Vale do Tejo (mais de um milhão sem equipa de saúde familiar).