Provedoria de Justiça recebeu quase tantas queixas em quatro meses como durante o ano de 2020.
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O número de titulares com abono de família, em março deste ano e em comparação com os homólogos dos últimos anos, teve a maior queda desde que a troika alterou as regras do subsídio em 2011. Face ao ano passado, há menos 55 mil crianças apoiadas e, face ao último março sem pandemia, em 2019, são menos 92 664. Os atrasos na atribuição das prestações ou nas reavaliações motivaram 426 queixas em 2021 junto da Provedoria de Justiça, mais 133% do que as 183 de 2020. Este ano, até ao início de maio, já havia 118 reclamações. A provedora chamou à atenção o Instituto da Segurança Social (ISS), no verão passado, mas a situação pouco ou nada melhorou.
O pagamento do abono de família deste ano baseia-se nos rendimentos de 2020, reduzidos pela crise da pandemia. No entanto, e já dois meses depois dos cortes habituais em janeiro para quem não enviou provas de rendimento, em março havia menos 8,3% de crianças a receber o subsídio da Segurança Social do que no homólogo de 2019. A diminuição de beneficiários noutras prestações familiares, bem como no rendimento social de inserção (um terço dos que recebem é menor), sugerem atrasos ou dificuldades dos cidadãos no acesso aos serviços.
Atrasos acumulados
Há queixas na Provedoria de Justiça, que chamou à atenção o Instituto da Segurança Social, no verão passado, mas pouco terá mudado. Os atrasos na atribuição de abonos de família motivaram, em 2021, 426 queixas, que contrastam com 183 em 2020 (mais 133%). Este ano, até 6 de maio, a instituição já recebeu 118 queixas.
"A provedora de Justiça dirigiu uma chamada de atenção ao Conselho Diretivo do Instituto da Segurança Social, a 11/08/2021, no sentido de serem adotadas medidas e procedimentos que, em tempo útil e atento, sobretudo, o novo ano escolar que se avizinhava, retomassem a eficácia na apreciação e decisão dos requerimentos", indicou fonte oficial da Provedoria de Justiça. "Estes atrasos comprometem não só o recebimento do abono de família, mas também o acesso, para as famílias mais carenciadas, a outros apoios sociais, nomeadamente a Ação Social Escolar, a atribuição de bolsas de estudo, a majoração do subsídio de desemprego e a tarifa social de eletricidade", completou.
Em resposta oficial à provedora de Justiça, o instituto assegurou que o tempo médio de deferimento daquelas prestações foi de 18 dias no ano passado, sendo o número de reclamações residual face ao total de processos despachados no ano: quase 126 mil, entre atribuição e reavaliação do abono, a que acresceram quase 64 mil de abono pré-natal, em 2020, e um total de quase 88 mil processos até julho do ano passado.
O JN também pediu explicações ao ISS e ao Ministério do Trabalho e Segurança Social sobre a quebra nos beneficiários de abono de família que se agravou, este ano, mas não obteve resposta.
Salário mínimo pode ditar perda de apoios, se IAS tornar a "congelar"
O aumento de 6% do salário mínimo nacional (SMN) e de 4,4% do Indexante de Apoios Sociais (IAS), este ano, pode ditar a perda do abono de família em 2024. Para impedi-lo, o IAS terá de ser atualizado de novo para que os escalões de abono não deixem de fora quem ganha o SMN. Será o caso de um casal com um filho maior de 6 anos em que ambos recebam o SMN: este ano, têm o 3.º escalão, mas, em 2024, podem cair para o 4.º, deixando de ter direito a abono.
2,3 milhões em risco de pobreza ou exclusão
Os dados mais recentes do INE dizem que, em 2020, a taxa de risco de pobreza (habitantes com rendimento mensal inferior a 554 euros) aumentou para 18,4%. A estes 1,893 milhões, junta-se meio milhão em risco de exclusão social (agregados com pouca intensidade laboral ou em privação severa).
23% em risco de pobreza sem apoios sociais
Após pagamento de pensões e antes de transferências sociais, quase um em cada quatro habitantes estaria em risco de pobreza.
Ajuda-me a pagar luz e água
Com três filhos menores, Raquel Macunge, 40 anos, recebe um salário de 768 euros e um cartão de compras com o valor do subsídio de almoço, pelo que, sem os 202 euros do abono de família, não conseguiria sobreviver até ao fim do mês. Cantora rap em Angola, mudou-se para Portugal, em 2019, para a filha mais velha ter acompanhamento médico em Coimbra, pois tem problemas de saúde, dos quais tem vindo a melhorar.
"O abono de família faz muita diferença. Não o consigo guardar a 100% para fazer uma poupança para os meus filhos, porque me ajuda a pagar a luz, a água, a comprar uma comidita em falta ou uma roupa", explica Raquel. "Mas guardo sempre algum [dinheiro] para ficar na retaguarda".
Trabalhadora empenhada, recebe prémios de assiduidade e de pontualidade, que lhe permitem ir pondo algum dinheiro na conta dos filhos. "O dono do Pingo Doce dá-nos 200 ou 300 euros no Natal para fazermos compras e 25 euros para cada filho. E dá-lhes prendas nos anos, campos de férias e explicações online", assegura. "Desde que trabalho lá, a minha vida mudou muito".
Cabaz mais magro
Como só pode contar com ajudas pontuais do marido, que ficou em Angola, Raquel vende, também, produtos de beleza na Internet, fabricados no seu país, para conseguir pagar a renda de casa de 400 euros, o ATL de 45 euros, todas as despesas com contas, combustível e comida, porque o cabaz da Segurança Social está cada vez mais pequeno. "Quando davam todos os alimentos, ajudava muito. Desde que cortaram no arroz, no atum, nas bolachas e no azeite, ficou mais complicado, mas vou-me aguentando".
Reconhecida pelos apoios que recebeu, sobretudo nos primeiros anos, da Cáritas e do Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social da Amitei - Associação de Solidariedade Social de Marrazes, em Leiria, a angolana diz que a sua vida hoje está mais estável, graças ao abono de família, pelo que decidiu comprar um telemóvel a prestações. À porta, tinha sacos com roupas para doar. "Não deitamos nada fora. Levamos à Cáritas ou à Cruz Vermelha, porque há outras pessoas que precisam".
"Cá as pessoas reclamam e não têm noção de que têm quase tudo em Portugal. Em relação a Angola, há mais qualidade de vida", afirma. A título de exemplo, destaca o facto de os três filhos não pagarem refeições na escola e terem desconto nos transportes urbanos de Leiria Mobilis. "No meu país, ninguém nos dá abono. Fazemos tantos descontos e não recebemos nada em retorno. Já não volto para lá".