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Percorrer Portugal na diagonal em bicicleta, do canto nordeste à ponta sudoeste, constitui um desafio que vai muito para além do milhar de quilómetros. É como andar de carrossel, tal a sucessão de serras e de rios, que teimosamente correm para o mar, atravessando-se no caminho de quem quer descobrir o país de alto a baixo.
Este imenso território funciona como um telhado. Gota de chuva que sobre ele caia não duvida nunca do caminho. Rola pela encosta até encontrar a sua linha de água. Ribeira, riacho, rio, chamem-lhe o que quiserem.
Esta combinação mágica de serra, rio e mar é o jackpot que muitos gostariam de ter. E nós temos. A diversidade da nossa terra é ímpar. Quem se pode vangloriar de tal arco-íris num retângulo deste tamanho?
Ontem, na quarta etapa dos mil quilómetros da minha vida, namorei com dois rios. Ao longo da ecovia do Dão, o rio com o mesmo nome abraçou-se a mim pelo lado esquerdo. Sussurrou confidências sobre a fauna e flora a que dá vida. Nem de propósito, pequenas lebres, com orelhas do tamanho do corpo, saltitavam ocasionalmente pela beira da via. Falou-me também da princesa das castas brancas, o encruzado, que empresta tons vegetais, florais e minerais aos mais delicados vinhos da região. E assim fomos até à barragem da Aguieira, altura em que o Dão passa o testemunho ao Mondego.
Foi o meu segundo amor em menos de duas horas. Ombreámos até Penacova. Aí, o rio colocou todas as cartas na mesa. Remo, vela, canoagem, praia fluvial, servidos em água fresca e límpida, com contorno verde, frondoso e sombreado. Gostei. Despedimo-nos, porque eu tinha de entrar pela serra.
Encarei o sol com determinação, serrando os dentes no ataque à subida. "Ainda vai trepar um bocado, mas valerá a pena", diz-me um jovem GNR, feliz por mim. Tinha razão. No final dos mais de cem quilómetros da jornada, lanço-me na curva à esquerda que desemboca na Ponte Real de Góis e vejo o paraíso. Travagem a fundo. Parecia um presépio. Plano de água, esplanada, praia, canoas, crianças. E muito verde. Tudo pequeno e íntimo. De novo um rio. O Ceira.