Ruído da movida não dá descanso aos moradores. "Os bares fazem o que querem e ficam impunes"
Moradores das zonas de diversão noturna de Lisboa e do Porto criticam falta de fiscalização. Barulho piorou depois da pandemia e quem faz queixa chega a ser ameaçado.
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O ruído é um problema antigo da cidade de Lisboa que piorou com a abertura de novos bares e "restaurantes que se transformam em discotecas". Maria Monteiro vive há 16 anos perto da Praça de São Paulo, em Santos, e não tem memória de nada assim. "Abro a janela e parece que estou num estádio de futebol, o barulho é impressionante", diz. Naquela zona "abriram 80 bares e restaurantes, mais de metade depois do confinamento, à revelia de um plano de urbanização que proíbe a abertura de bares aqui".
"Muitos abrem como restaurantes e depois de jantar viram discotecas, com DJ e as portas abertas. O barulho até às tantas da manhã está a expulsar os poucos que ainda aqui vivem", lamenta a moradora, membro da associação "Aqui Mora Gente". Teresa Fraga, da Associação de Moradores de Santos, também não tem tido um dia de descanso. "Há um restaurante na minha rua com música até às 2 horas todos os dias. Num domingo, chamei a polícia três vezes porque às 23 horas outro restaurante continuava com um DJ no meio da rua. Nunca houve este nível de ruído".
A moradora, que ali vive há 14 anos, acredita que o cenário vai piorar. "Esta semana, abriu outro restaurante, no Largo de Santos, com esplanada, quando a Junta da Estrela nos informou que tinha suspendido as licenças das esplanadas. Aqui na minha rua, um prédio vai para obras e o rés do chão está a ser vendido para bar, numa zona residencial", conta, acrescentando que ninguém controla "a abertura de bares ilegais".
A falta de fiscalização dos estabelecimentos é outra das queixas. "No Príncipe Real, os restaurantes têm medidores de ruído e aqui temos de ser nós a pedir para fazerem as obras de isolamento. Não há fiscalização, a Câmara não quer saber", acusa Teresa. Maria Monteiro diz que chamam a polícia mas, assim que esta vai embora, os bares voltam a ligar a música. Critica ainda o município por "conceder prolongamentos de horários" e do "regulamento de horários não estar a ser cumprido". "Os bares fazem o que querem e ficam impunes".
Desassossego "piorou bastante" no Porto
Andam aos berros contra as portas
Por vezes, o raciocínio despista-se a meio da conversa; a memória coxeia e embaraça-os com uma "branca" súbita que lhes suspende o discurso. "É a falta de descanso, sabe?", desculpa-se Fernando Pinto, há uma década martirizado pela movida na outrora pacata Rua dos Mártires da Liberdade, coração do Porto, onde o desassossego "piorou bastante" após o alívio da pandemia.
"Está muito pior do que antes da covid. Não é só ao fim de semana; é todos os dias, de domingo a domingo. Está de uma maneira que é quase impossível viver", lamenta o morador, que se queixa do "barulho da música" dos bares e dos notívagos na rua. "Só lhes dá para gritar. É um pandemónio. As pessoas já vêm para aqui eufóricas, com bebidas, e andam aí aos berros, aos saltos, contra as portas... Parece que ficaram loucas com a pandemia", descreve Fernando, que viu os filhos mudarem para outro concelho, fugidos ao tormento da movida. "Foram para Gondomar. Agora, votam lá", ironiza o portuense, que não compreende que se sobreponha uma política apostada em promover a diversão noturna em zonas residenciais ao direito ao descanso consagrado na Constituição.
Maria Moreira, professora que vive com "cansaço contínuo", tem por sombra o "sono permanente", fruto da privação de repouso. Com raízes sólidas no Carmo, onde vive com a mãe de 87 anos, em pesadelo algum sonhou ver um dia a cidade com o "ambiente assustador" que observa diariamente, à noite e ao romper da manhã, quando sai para dar aulas.
Além do "escalar" do ruído após a pandemia, há a "situação de saúde pública: vomitam na rua, partem garrafas, urinam e, às vezes, até cocó fazem na rua, porque acham que esta zona da cidade é assim, ao deus-dará", lastima a moradora, que nota ainda "contornos de malvadez, violência e represálias" contra quem pede sossego. Como aconteceu com a vizinha Paula Amorim que, na semana passada, foi ameaçada com a explosão de um petardo na caixa de correio, após denunciar à polícia o ruído de um bar. Tal como os vizinhos, perdeu a conta às queixas remetidas à Câmara desde "há 15 anos, pelo menos". "Perdemos vizinhos e comércio tradicional, e o que ganhamos tira-nos qualidade de vida e põe-nos doentes", resume Maria Moreira, que por vezes vai dar aulas "sem dormir", debatendo-se com "dificuldades de concentração".