Técnicos da Segurança Social começam a ter formação na próxima semana. Até hoje foram adotadas 16 crianças, como o Sérgio, que é feliz com dois pais.
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José (nome fictício) cortou relações com os pais por estes não aceitarem a sua homossexualidade. Quando casou e quis adotar uma criança com o companheiro de mais de 20 anos, a ausência dos avós foi usada como justificação para rejeitar a adoção.
Este é um dos casos de insucesso relacionados com a lei que permitiu a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, que foi aprovada na Assembleia da República há seis anos. O balanço é positivo, dizem os especialistas, mas o caminho para chegar à igualdade ainda é longo.
"A discriminação existe porque se vem exigir um conjunto de regras iguais às de um relacionamento linear de um casal heterossexual, quando estão a falar com pessoas que não se puderam casar quando quiseram, que foram discriminadas ou não tiveram a aceitação da família", afirma José, num desabafo sobre o caso que acabou com o juiz do Tribunal de Família e Menores de Lisboa a dar razão ao casal. José e o marido já estão aptos para a adoção, mas têm 50 anos e o tempo começa a esgotar-se, pois o limite de idade entre adotante e adotado não pode ser maior que 50 anos.
CASO DE SUCESSO
Bem diferente é o caso de Jorge Cabral, de Almada, que adotou sozinho o filho, Sérgio, em 2011. Jorge já vivia em união de facto com o companheiro, Pedro, mas a lei só permitia que um deles fosse o adotante e Pedro foi dado como "amigo da família". Sérgio tinha quatro anos e o processo demorou um ano. Quando a lei que permitiu a adoção e coadoção por casais LGBT foi aprovada, Pedro coadotou o Sérgio que, na prática, já era seu filho. "Fizemos sempre questão que ele tratasse o Pedro por pai. Tínhamos algum cuidado quando as equipas técnicas iam fazer visitas", recorda Jorge Cabral, entre risos.
Hoje, Sérgio é um adolescente feliz, estudante e apaixonado por música. Desde cedo que os pais lhe ensinaram a falar a verdade sobre o assunto, a dizer na escola que tem dois pais e que não há mal nenhum nisso. "Nós também estivemos sempre presentes e ele nunca foi discriminado pelos colegas pelo facto de ter dois pais", assegura Jorge, que ainda guarda o candeeiro do Pinóquio, da metafórica história de um pai que construiu um filho.
16 ADOÇÕES ATÉ 2020
Os números mais recentes relativos a adoções, do Instituto da Segurança Social, são de 2019 e dão conta de 16 crianças integradas em casais do mesmo sexo desde o início da lei. Em 2017, houve nove pedidos e sete adoções, em 2018, foram 18 pedidos e quatro adoções e, em 2019, houve 17 pedidos e cinco adoções. Quanto a 2020, o número de pedidos subiu para 43 e ainda não há dados relativos a adoções.
A Associação ILGA Portugal - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo faz um balanço positivo. Marta Ramos, diretora-executiva da ILGA, lembra que a lei veio trazer "sentido de legitimidade e reconhecimento de acesso a direitos na sua plenitude, sem barreiras acrescidas". Ou seja, a lei "foi transformadora", mas "de certeza que existe discriminação nos processos de adoção, sem sombra de dúvidas", lamenta Marta.
A ILGA Portugal tem alertado para a necessidade de formar os técnicos da Segurança Social para a temática LGBT e o JN sabe que a formação vai começar na próxima semana. O curso chama-se "Homoparentalidade adotiva: uma intervenção afirmativa e capacitadora das famílias", lecionado por Jorge Gato (ler entrevista). Todas as 18 equipas dos centros distritais da Segurança Social vão ter dez horas de formação.
Está ainda a ser adaptado o manual de preparação da criança para a adoção, de Margarida Henriques, uma espécie de bíblia para todos os técnicos. A adaptação visa incluir as especificidades relacionadas com a adoção por parte de casais do mesmo sexo.
Aprovação "histórica" à quarta vez
As alterações às leis da adoção e ao Código do Registo Civil foram aprovadas na Assembleia da República a 20 de novembro de 2015. Foi a quarta vez que a proposta foi votada. Antes, tinha sido rejeitada três vezes. Os projetos de lei do PS, BE, Os Verdes e PAN foram aprovados por toda a Esquerda, que considerou a aprovação "histórica", e por 19 deputados do PSD. Mas a lei ainda demoraria a entrar em vigor, pois Cavaco Silva vetou o diploma, o que obrigou a nova votação no Parlamento que viria a confirmar a alteração legislativa. A lei acabaria por entrar em vigor a 1 de março de 2016, inscrevendo "a admissibilidade legal de adoção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo", ou em união de facto.
Pormenores
Morosidade - A morosidade nos processos de adoção é a crítica mais apontada por casais e especialistas, embora seja também extensível a casais heterossexuais. Há poucas crianças "adotáveis" e o processo envolve diversas verificações que demoram vários anos.
Famosos ajudaram - A adoção de crianças por parte de casais do mesmo sexo que ganharam visibilidade mediática ajudaram a abrir mentalidades. O casal Diogo Infante e Rui Calapez é um dos exemplos. A entrada em vigor da lei também teve esse efeito.
Receio da reversão - Na Europa, a maioria dos países tem leis que permitem o casamento e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. No entanto, a reversão destas leis encetada por países como a Polónia constitui um receio em Portugal, por parte de casais e de associações como a ILGA.
Sabemos que o estigma ainda existe"
A partir da próxima semana, Jorge Gato vai dar formação a técnicos da Segurança Social que lidam com processos de adoção. O doutorado em Psicologia, investigador na Universidade do Porto e especialista em parentalidades LGBT, fala das particularidades destes casais e da vontade que os técnicos têm em percebê-las melhor.
Quais os conteúdos da formação que vai ministrar?
Já fizemos uma formação, uma espécie de projeto-piloto, na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que serviu para testar os conteúdos. A nova formação tem uma particularidade, que é partir da necessidade de formação que identificamos quando falamos com estes técnicos. Nós fizemos um primeiro estudo em que percebemos quais eram os aspetos que precisavam de ser afinados. As tais pequenas coisas que são especificidades dos casais do mesmo sexo, que não são necessariamente desvantagens, mas devem ser tidas em consideração.
E quais são?
Tem muito a ver com o facto de as pessoas estarem formatadas para trabalhar com casais de sexo diferente. Têm a ver com o papel do estigma, por exemplo, na relação com a família de origem, pois sabemos que os casais do mesmo sexo também estabelecem relações com aquilo que nós conhecemos na literatura por famílias de escolha. Ou seja, nem sempre as redes sociais têm laços biológicos. Podem ser amigos, outras famílias LGBT, e essa é uma particularidade.
É preciso tratar de forma diferente para que o acesso seja igual?
Estas famílias não estão no mesmo patamar porque sabemos que o estigma ainda existe. Provavelmente terão passado por uma estigmatização que tem a ver com a sua própria identidade sexual e de género. Podemos usar essa experiência para as preparar e capacitar para lidar com uma criança numa situação de adoção. Estas pessoas, à partida, já trazem uma história de confronto com a sociedade que pode ser transformada numa vantagem, pois já sabem o que é o preconceito.
Que balanço faz da lei?
O balanço que eu posso fazer é positivo. Eu vejo algum interesse por parte destas equipas em receber formação sobre esta questão, isso para mim é o mais importante. É uma temática sensível e é importante, para um profissional, admitir que não sabe mas quer saber.
Que problemas identifica?
Há muitas crianças em instituições, mas há poucas crianças em situação de adotabilidade, e isto coloca situações, mas não é específico de casais LGBT. Há, de facto, um problema de morosidade.