O ritual é diário. Mal a luz do dia se afasta, Joaquim Aguiar, de 62 anos, estende os cobertores à porta da mesma loja de roupa. Um preto por baixo, bem dobrado, para amaciar o chão de paralelo. Outro cinzento por cima, a tapar as três camisolas e a camisa. "És da Câmara?", pergunta, já pronto a refilar por lhe terem levado os cobertores no dia anterior. "Se não és da Câmara, então és meu amigo", sentencia, chamando "bandidos" aos agentes municipais.
Corpo do artigo
"Eles levam os cobertores quando as pessoas chegam de manhã para abrir a loja e fazem queixa porque têm tudo à porta, mas à noite nós damos-lhes outros", esclarece Carolina Vaz, voluntária de 28 anos do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA), que ajudou a sensibilizar para a vacina alguns dos 590 sem-abrigo que as autoridades estimam que existam no Porto.
14678133
há 15 anos na rua
Um dos mais antigos é Joaquim Aguiar, de 62 anos. Dorme todos os dias no mesmo canto da Rua Júlio Dinis há 15 anos. Diz ter começado a trabalhar aos 14 anos numa serralharia de Ponte de Lima, onde nasceu. "Eu era bom serralheiro. O patrão até me deu um conto a mais por trabalhar de noite", recorda, enquanto lança o olhar no vazio. Cala-se durante três segundos, depois desfere um murro forte contra o vidro da loja de roupa, e grita: "Graças a Deus que cá ando". Joaquim está vacinado contra a covid-19 graças à assistente social que acompanha aquela rua do Porto. "Já levei as duas doses e a da gripe", grita novamente, ainda a recompor-se da recordação que o atingiu segundos antes. Não usa máscara e não toma banho, mas também não se mistura com os outros. Enquanto o sol reluz, só quer fazer o dinheiro do dia "para um copinho" que o aqueça à noite e lhe faça companhia até que o sono chegue. No dia a seguir, a sina repete-se.
comida para dezenas
A noite está particularmente fria e os termómetros colaram nos dois graus. Sempre que a carrinha da CASA chega e estaciona no meio da Júlio Dinis, dezenas de sem-abrigo apressam-se a ir buscar a saca com sandes, bolo, pão, duas bananas, uma tangerina, um iogurte, uma maçã e a massa com frango do dia. Chegam, esfregam as mãos e a maioria não fala para as voluntárias, quanto mais para jornalistas, pois urge afagar a fome.
Entre eles está José Bastos. Traz um gorro felpudo com duas orelhas catitas e vem de telemóvel em riste para mostrar o certificado digital covid-19. "Estás a ver? Tenho tudo em dia", assevera com orgulho. Não sabe onde nasceu nem quantos anos tem. Diz ter sido vacinado em França, na rua, e garante que vai voltar dentro de um mês: "Já tenho o bilhete do autocarro". Por vezes, os problemas de saúde mental esbatem a fronteira entre a realidade e a ficção. As voluntárias do CASA alertam para isso. "Isto é duro", conta Carolina.
"somos Príncipes da rua"
João Pereira Bártolo é exemplo disso. A dormir na Rua Gonçalo Cristóvão, transpira um humor que deambula entre a alegria e a raiva. "Somos os príncipes da rua, mas também vivemos no holocausto", hesita. "Não. Somos os príncipes da rua, ponha antes assim", pede, enquanto ajeita a camisola dos Slayer. Fala muito e só faz silêncio quando fala da irmã, psicóloga renomada de quem diz ter saudades.
No reino de João, o príncipe já tem uma dose da vacina e queria tomar a segunda, só que não tem cartão de cidadão: "Estava na carteira que me roubaram. Num dia deitei-me a dormir e quando acordei só tinha o cobertor e a roupa do corpo".
Naquela rua, garante, são raros os sem-abrigo com a vacinação completa. "Estão tão em baixo que nem têm tempo de olhar pela saúde. Em quatro meses já morreram duas pessoas à minha beira", assegura João Bártolo.
Nas ruas do Porto, uma parte dos sem-abrigo vacinou-se porque as instituições os convenceram quando foram ao seu encontro entregar comida. Ana Salão, do CASA Porto, foi uma das que participaram. A antiga financeira, agora profissional da ajuda aos sem-abrigo, sublinha que "houve um trabalho grande de sensibilização" com as assistentes sociais para que muitos fossem vacinados. E garante: "O número de pessoas na rua triplicou com a pandemia".
a maldita seringa
Muitos, como António Azevedo, de 40 anos, tomaram a primeira dose graças à Assistência Médica Internacional (AMI). "Fui lá e eles reencaminharam-me", diz, enquanto espera pela comida do CASA.
Reconhece que quer a vacina de reforço, mas começou a trabalhar "nuns biscates" e agora tem menos tempo. É um sem-abrigo com teto, pois vive em casa emprestada e tem um plano para se reerguer.
Ao contrário de um sem-abrigo cujo nome o próprio pediu para não ser revelado, deitado com o cobertor até à cintura, na Rua dos Castelos. A única seringa que viu nos últimos meses foi aquela que lhe destruiu a vida e que o pôs ali, a dormir na rua.
Os olhos esbugalhados acabados de acordar com a carrinha do CASA têm tanto de assustadores como de penetrantes. Pouco liga à saca de comida que lhe põem ao lado. Está noutra, arrependido, a preparar a dose com que sempre acorda. Também este é um ritual diário e gera remorsos: "Desleixei-me".