Rede Europeia fala em "falta de vontade política". Medidas lançadas para as famílias seriam "potenciadas" se enquadradas no plano, avisa economista. Cáritas alerta para "dias piores".
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São de descontentamento e de frustração as palavras de quem está no terreno a lidar com os rostos da pobreza. Sabendo-se que, no ano passado, mais 256 mil pessoas entraram naquela condição, sendo agora 2,312 milhões, o setor social não compreende por que razão a comissão que irá implementar a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP) não foi ainda nomeada. Mais de oito meses volvidos sobre a aprovação do documento que se propõe retirar da pobreza, até 2030, 660 mil pessoas.
Lembrando que a pobreza "é injusta" e atenta contra a dignidade humana, o presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, Lino Maia, lamenta-se: "Infelizmente, anunciam-se medidas, mas, depois, falta agilidade para as pôr em prática". Carlos Farinha Rodrigues, economista que trabalhou na ENCP, é perentório: "Já devia estar cá fora há muito tempo. Há novos fatores de crise e de agravamento das condições de vida". Reconhecendo que o "Governo tem respondido com algumas medidas", entende, no entanto, que se "estivessem enquadradas numa estratégia seriam potenciadas".
Jardim Moreira, da Rede Europeia Anti-Pobreza, fala em "falta de vontade política", na medida em que a pobreza "só se resolve com intervenções políticas estruturais e, neste país, temos muita dificuldade em tomar medidas estruturais".
A realidade não é nova. Como dizia Alfredo Bruto da Costa, já falecido, "nós sabemos quem são os pobres em Portugal". Num rosto idoso, feminino, infantil, que trabalha mas aufere pouco, que tem menores a cargo. Constatando aquele conselheiro de Estado que a "pobreza é um problema político".
À espera da comissão
Publicada no final de 2021, dois anos após ser criada a comissão que a viria a elaborar, dentro do prazo, a ENCP aguarda pela nomeação, por parte da comissão interministerial de alto nível, do coordenador nacional da Comissão Técnica de Acompanhamento. Que, de acordo com a resolução do Conselho de Ministros, teria 180 dias para apresentar um plano de ação 2022-2025. Questionado pelo JN sobre o porquê do atraso e para quando a nomeação da equipa, o Ministério da Segurança Social nada disse.
"Não compreendo. Quanto mais tempo passa mais difícil é depois intervir", diz Jardim Moreira. E enquanto a ENCP não vai para o terreno, Lino Maia identifica como premente uma "remuneração do trabalho justa", num país onde 11,2% dos trabalhadores são pobres. Posição corroborada pela presidente da Cáritas: "Só se resolve com base no rendimento, só isso pode tirar as pessoas da pobreza, não é com apoios pontuais".
Sobre a estratégia e a comissão, entende Rita Valadas que o seu desbloqueio seria "um sinal de esperança para as instituições", muito embora, vinca, "não é por existir uma comissão que vamos melhorar ou piorar a situação em que estamos". Porque, explica, "não é a estratégia que encontra os meios para resolver os problemas destes últimos anos". Deixando um aviso: "Vamos ter dias piores do que estes; não é preciso o Eurostat para nos dizer que a situação vai ser crítica".
O que a estratégia pode fazer, diz Carlos Farinha Rodrigues, é "potenciar" e "integrar" as medidas que têm sido recentemente adotadas pelo Executivo, como sejam no campo do abono de família ou das creches gratuitas. "Não podemos dizer que esteja parado. Mas são medidas que não atingem o seu potencial pleno porque estão desintegradas da estratégia, que é urgente".
Para Eugénio Fonseca, "enquanto continuarmos a ter políticas avulsas nunca mais chegaremos lá". Defendendo o presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado "um debate da Nação só sobre pobreza", o que "seria um ato de coragem do Governo".
Economia
A "armadilha" do rendimento nominal e a incógnita do IAS
A nota é da presidente da Cáritas: "As taxas e os números não nos fazem uma leitura da pobreza porque a variabilidade de uma mediana deixa-nos pouco confortáveis". Desmontando. Muitas das medidas sociais são baseadas nos rendimentos das famílias que, "no atual contexto inflacionário, não descem e até podem subir", porque não expurgam a inflação, explica Carlos Farinha Rodrigues. "Um problema gravíssimo nos indicadores da pobreza porque podem não captar esse efeito porque os rendimentos nominais até podem subir", avisa. E no caso do indexante dos apoios sociais (IAS), que serve de referência ao cálculo de diversos apoios e cuja atualização está a ser estudada pelas Finanças, "pode deixar muitas pessoas de fora". Sendo "essencial ver a resposta que vai ser dada em relação às prestações sociais", frisa o economista.