Maioria só é registada quando chega grávida ao hospital. Única condenação pelo crime decidida em janeiro. Procuradoria investiga mais duas situações.
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Entre 2015 e 2020, o Ministério Público abriu 12 inquéritos sobre mutilação genital feminina, mas, desde que a prática foi considerada crime autónomo, apenas um processo chegou a tribunal. Só, este ano, foram reportados 101 casos de mulheres vítimas desta prática violenta pelos centros de saúde e hospitais.
Dos 12 inquéritos abertos pela Procuradoria-Geral da República, nove foram arquivados, dois estão em investigação e o único que seguiu para tribunal foi o de Rugui Djaló, cidadã guineense. É a única pessoa condenada a três anos de prisão efetiva pelo crime de mutilação genital da filha de um ano de idade durante uma viagem ao país de origem. A sentença foi conhecida no início deste ano.
"Devemos ter uma abordagem, sobretudo, de intervenção para a saúde plena e de defesa dos direitos, porque, quando fazemos abordagens mais judicialistas, as comunidades fecham-se ainda mais e é mais difícil detetar o crime", defende a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, apontando para a estratégia de diálogo que tem vindo a ser seguida, mais de prevenção do que de condenação.
Alistar contra a prática
Os rituais de remoção dos órgãos genitais das mulheres acontecem quase sempre até aos 12 anos, mas os diagnósticos só são feitos muitos anos mais tarde.
Dos 101 casos registados em 2020, a maior parte (45) foi detetada apenas durante a gravidez, quando as vítimas já tinham, em média, 30 anos. "O que está a aumentar é o registo, não é o número de mutilações em crianças", sublinha. Há, no entanto, menores de idade que não fazem parte das estatísticas. "O não aparecimento desses números tem a ver com o trabalho que tem de ser feito com os profissionais de saúde, para que haja mais sinalizações das crianças. Por outro lado, também encontramos muitas meninas, com 15, 16 e 17 anos, que nunca tinham ido a um médico em Portugal e que já vinham com a prática feita", afirma Alexandra Alves Luís, presidente da Associação de Mulheres sem Fronteiras, uma das organizações que trabalha junto de comunidades afetadas por este ritual.
As vítimas têm sido as primeiras a alistar-se para lutar contra a prática. "Não podemos estar à espera de apanhar pessoas no aeroporto e não as deixar viajar para os seus países. Tem é de haver prevenção. Há raparigas que conhecemos e que já têm filhas e que, agora, são ativistas", conta Alexandra Luís.
Nos últimos dois anos, foram formadas cinco mil pessoas contra esta temática, através do projeto "Práticas Saudáveis: Fim à Mutilação Genital Feminina", mas a chegada de novos migrantes de países, onde a mutilação tem prevalência, como a Eritreia, traz novos desafios. "Esta maior diversidade vai exigir outras formas de atuação, porque, muitas vezes, são comunidades que ainda não estão organizadas, em termos de associativismo, e com quem não temos tanta proximidade histórica", considera Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).
"A saúde escolar é um gatilho muito importante para conseguirmos chegar às mães e ajudar estas mulheres a procurarem os serviços de saúde mais cedo". Estima-se que, em Portugal, vivam 6500 mulheres vítimas deste crime, sobretudo na zona da Grande Lisboa. "O grande desafio é dar força a estas mulheres, para que as novas gerações não sejam mutiladas", acrescenta a presidente da CIG.