Depois de anos de letargia, de sucessivas lamúrias, de quebras de vendas, de encerramentos e de angústias que a época de Natal não ajudava a disfarçar, o comércio tradicional ganha alento no centro do Porto. Uma nova vida que sucede a anúncios de uma morte iminente que, afinal, acabou fintada.
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Os números não mentem e confirmam que 2018 é o ano com o maior investimento de sempre no comércio de rua no Porto. Dados disponíveis até setembro - ainda não foram contabilizadas as movimentações do último trimestre - indicam a abertura de 33 novas lojas nas zonas de maior fluxo da cidade.
Feitas as contas, nos primeiros nove meses de 2018 a média roça uma loja inaugurada por semana, quatro vezes mais do que em igual período de 2017, que, por sinal, já tinha registado números históricos. Os dados estão incluídos num relatório alargado da consultora internacional CBRE, que escalpeliza a atividade económica do Porto e a que o JN teve acesso.
As ruas de Santa Catarina e das Flores, a Avenida dos Aliados e a zona dos Clérigos foram as áreas onde o crescimento foi mais visível. Só aqui, o número de estabelecimentos inaugurados este ano foi quatro vezes superior ao de 2017. Metade deles cafés e restaurantes, o que denota o aproveitamento da onda de turistas que diariamente visitam a cidade e que circulam mais regularmente pelos postais ilustrados que o Porto lhes oferece.
A importância do Low Cost
No que ao turismo diz respeito, e ainda segundo os dados compilados pela CBRE, a estatística sublinha outros recordes. Desembarcaram no Aeroporto Francisco Sá Carneiro 5,4 milhões de passageiros - os dados são de 2017, os últimos avaliados -, cifra que confirma um aumento médio de movimentação de 140% nos últimos 10 anos em relação à década anterior. A previsão é que em 2018 a tendência de crescimento se confirme. Para isso muito contribuíram fatores como a constante aposta das companhias aéreas de baixo custo no Porto, a promoção turística realizada no exterior e os prémios para melhor destino europeu conquistados pela cidade em 2012, 2014 e 2017. Paralelamente, e como consequência natural, a taxa de ocupação hoteleira, também ela, regista uma linha em permanente ascendente, atingindo uma média que ronda os 70%, mais 30% do que em 2008.
Ora, a conjugação de mais turismo com a retoma da economia nacional, traduzida em maior poder de compra veio dar ao comércio portuense motivos para sorrir. É neste cenário otimista que a época de Natal tem gosto diferente em relação a passado não muito distante no tempo, quando a afluência de clientes era escassa, as receitas dos lojistas quase ínfimas e as grandes superfícies pareciam devorar as ambições de negócio dos mais pequenos.
om a retoma económica, o poder de compra das famílias aumentou e foi criada uma nova dinâmica que trouxe novamente os portuenses para as ruas
"Até há quatro anos, a tendência era para a diminuição do número de lojas. Não havia clientes e as políticas de incentivo ao comércio tradicional não eram as melhores. Com a retoma económica, o poder de compra das famílias aumentou e foi criada uma nova dinâmica que trouxe novamente os portuenses para as ruas", reflete Joel Azevedo, presidente da Associação dos Comerciantes do Porto (ACP). Para quem o Natal "será, seguramente, temporada de grande procura" e em que é previsível que o comércio do Porto viva "momentos como não vivia há muitos anos".
O ritmo alucinante que define os últimos meses do comércio de rua tende a ser ciclo sem interrupção previsível. A CBRE estima que "a reabilitação de diversos edifícios na Avenida dos Aliados deverá disponibilizar mais de 20 novas lojas até 2021." Nesta contabilidade não estão incluídas outras zonas tradicionalmente associadas à proliferação de comércio, como Santa Catarina, Clérigos ou as Flores.
A médio prazo está também prevista a abertura do renovado Mercado do Bolhão, em 2020, depois de profundas obras de reabilitação que tiveram início em meados deste ano. Em frente, o quarteirão de D. João I também tem obras planeadas que deverão viver movimentação mais intensa a partir de 2019.
"São dois projetos determinantes para a consolidação do comércio na Baixa do Porto, na medida em que reforçam a ligação entre a rua de Santa Catarina e a Avenida dos Aliados", aponta a CBRE.
Consequência quase direta do crescimento em flecha do comércio foi o arrastar da subida média das rendas dos estabelecimentos por metro quadrado. A procura elevada e a parca oferta de espaços justificam a escalada. Que parece não ter fim. "O número de lojas disponíveis em comercialização nas principais artérias de comércio do Centro Histórico é reduzido", lembra a CBRE.
Santa Catarina foi o perímetro onde os valores das rendas mais subiram em comparação com 2017: 33%. Cada metro quadrado nesta rua maioritariamente pedonal é arrendado por 60 euros. A segunda zona mais cara é a dos Clérigos, onde se registaram aumentos de 13% e o metro quadrado custa 45 euros, mais dos que os 40 euros pedidos na Rua das Flores e nos Aliados.
Medidas de combate à especulação
"É nesta questão do arrendamento que se irá notar, ou não, a marca da identidade do Porto e do seu comércio no futuro próximo. Quanto mais altas forem as rendas, maior é a possibilidade de serem pagas apenas por quem tem mais possibilidades financeiras. Que, geralmente, são grandes empresas que acabam por esmagar os pequenos lojistas", considera Joel Azevedo. O presidente da ACP entende que é aqui que o problema deve ser atacado de raiz, antes que as proporções façam descambar a situação para níveis fora do controlo.
"Muitas lojas abrem mas não conseguem passar o primeiro ano de existência. Há que tomar medidas de combate à especulação", sugere Joel Azevedo. Porque se o Porto for tomado maioritariamente por estabelecimentos de marcas que podem ser encontradas em qualquer parte do mundo, "é parte da cidade que está em causa", marcas de personalidade "que poderão perder-se para sempre."