Decisões do Constitucional usadas para ilibar autores de maus-tratos a animais
Arguidos absolvidos em três processos por tribunais considerarem que lei que criminaliza as maldades sobre os bichos não tem cobertura na Constituição.
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A lei que criminaliza os maus-tratos e o abandono de animais de companhia ainda não caiu, mas três acórdãos do Tribunal Constitucional (TC) já a consideraram inconstitucional. A associação Animal lançou uma petição e o PAN até quer alargar proteção a outros bichos.
Os juízes do TC consideram que a punição com prisão só é aplicável quando se atenta contra valores que a Constituição protege, não estando concretamente definido o bem jurídico em causa quando se maltrata um animal, argumentam [ler texto ao lado].
O facto de haver três acórdãos naquele sentido não invalida de imediato a lei. O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia explicou, ao JN, que o Ministério Público terá de abrir um "processo de fiscalização abstrata da constitucionalidade" da lei. Depois, o Plenário do TC apreciará a questão e, se a maioria assim entender, a lei será declarada inconstitucional e deixará de poder ser aplicada. O Plenário tem 13 juízes e as decisões de inconstitucionalidade tomadas até agora foram assinadas por cinco juízes do TC.
"Estes casos concretos não têm eficácia geral. As pessoas foram absolvidas, porque a norma penal foi considerada inconstitucional, mas o crime continua a existir e outras pessoas podem ser condenadas. Só desaparece se houver fiscalização abstrata", sublinha Bacelar Gouveia.
Questionado pelo JN, o Tribunal Constitucional informou que, até quarta-feira passada, "não deu entrada no Tribunal qualquer requerimento" naquele sentido. Entretanto, os acórdãos já proferidos são um convite a que outros arguidos recorram a este tribunal, invocando a inconstitucionalidade da lei.
A Animal lançou já uma petição, na qual se pede que, quando houver uma revisão constitucional, "seja incluída, de forma completamente inequívoca, de forma claríssima, a proteção dos animais na redação", diz Rita Silva. Na petição, que ontem reunia 1282 assinaturas, diz-se que "é dever manifesto dos humanos respeitarem os animais e promoverem a sua proteção, sendo estes merecedores de consideração e proteção jurídica". E lembra o artigo 13.º ºdo Título II do Tratado de Lisboa, segundo o qual a "União e os estados-membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar dos animais sencientes".
PAN critica leitura do TC
"Mesmo com a lei, havia pouca aplicação", admite Rita Silva, receando que se gere um sentimento de "impunidade" de quem maltrata. Para Margarida Saldanha, da União Zoófila, é "assustador pensar que retrocedemos em vez de avançar". Sandra Duarte Cardoso, da SOS Animal, diz que a sociedade "exige mais direitos" para os animais e "não um retrocesso".
Para Inês de Sousa Real, do PAN, "os juízes da secção não fazem a interpretação adequada da Constituição". "O bem-estar animal é hoje um bem jurídico incontornável na União Europeia e, no Estado português, temos um Código Civil próprio dos animais", diz. É preciso aguardar pela decisão do Plenário.
Mas o PAN quer alterar a Constituição, para proteger todos os animais sencientes (dotados de sensibilidade e capacidade de sofrer) e não só os de companhia. Será uma oportunidade para "densificar a forma como está redigida a norma, procurando corrigir assim a fragilidade que possa ter vindo a ser apontada e blindar a alegada inconstitucionalidade", diz Inês Sousa Real.
Lei anterior apenas previa coima
A lei 69/2014, que criminaliza os maus-tratos a animais de companhia, refere que quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Se daí resultar a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.
Se esta lei for revogada, volta-se ao quadro legal anterior, segundo o qual matar ou maltratar um animal não é um crime, mas está sujeito apenas a uma coima. Os particulares poderão pagar até 3740 euros.
1765 denúncias
Em 2021, foram feitas 1159 denúncias de maus-tratos a animais de companhia e 606 por abandono, nas esquadras da PSP e da GNR. É uma diminuição em relação a 2020, altura em que se registaram 1783 queixas destes dois tipos de crime. Este ano, até final de abril, já estavam contabilizadas 537 denúncias nas duas forças policiais.
Sentenças
Tribunais de primeira e segunda instâncias já estão a absolver arguidos acusados de crimes de maus-tratos animais, devido à jurisprudência do Tribunal Constitucional. Veja a síntese de três absolvições, neste tribunal superior, na Relação Superior e logo em primeira instância.
braga - Animal gira pelo ar "como se fosse uma hélice"
Um homem foi absolvido no Tribunal de Braga, em junho último, da acusação de maus-tratos a uma cadela, numa sentença que já teve em conta um acórdão do Tribunal Constitucional que considerou a lei dos maus-tratos a animais inconstitucional.
O tribunal de primeira instância concluiu que o homem, julgado à revelia por se desconhecer o seu paradeiro, "agarrou a trela da cadela e, após girar o animal pelo ar, como se fosse uma hélice de helicóptero, num número indeterminado de vezes, atirou a cadela ao chão, que ficou a ganir, com dores". O tribunal entendeu que o arguido agira "com o propósito, concretizado, de molestar fisicamente" a cadela e "provocar-lhe dor e sofrimento, sem qualquer motivo que justificasse esta atuação".
Mas absolveu o arguido, invocando o acórdão do TC de 10 de novembro de 2021 que julgou inconstitucional a lei que penaliza tais situações, por "não haver fundamento constitucional para a criminalização dos maus-tratos a animais de companhia". "Não é possível identificar o bem jurídico com dignidade constitucional capaz de justificar a tutela e a punição que o legislador decidiu empreender", corroborou o juiz de primeira instância na sentença absolutória.
O magistrado cita os juízes conselheiros do TC, segundo os quais "a conduta típica ou penalmente proibida tem de ser descrita de modo especialmente preciso e determinado, para os destinatários da norma incriminadora poderem com segurança conhecer os elementos objetivos e subjetivos da infração".
ELVAS - Mata cão a tiro e acaba absolvido na Relação
Também o gerente de uma empresa, condenado a multa pelo Tribunal de Elvas, por ter morto um cão a tiro, foi mais tarde absolvido pelo Tribunal da Relação de Évora. "[Não se questiona], "evidentemente, a necessidade de proteção jurídica dos animais e da punição dos atos de crueldade sobre eles. O que nos suscita sérias reservas, desde logo de constitucionalidade, [...] é a mobilização do direito penal de justiça, para esse desiderato", dizem os juízes desembargadores, acrescentando que, então, o Tribunal Constitucional já se tinha pronunciado, pelo menos, duas vezes pela inconstitucionalidade material do artigo 387.º do CP". O recorrente foi absolvido do crime de maus-tratos a animais de companhia.
PALMELA - Esventra cadela prenha e não foi punido
O primeiro caso a chegar ao TC e a motivar uma declaração de inconstitucionalidade foi o de uma cadela, de raça pastor alemão, esventrada quando estava em trabalho de parto. Tanto ela como as crias morreram.
O caso aconteceu em Venda do Alcaide, Palmela. O homem alegou que não tinha dinheiro para recorrer a um veterinário e que estava habilitado a fazer a intervenção por ter tirado um curso de enfermeiro na Guiné, durante a Guerra Colonial. Não se conformou com os 16 meses de prisão efetiva a que foi condenado pelo Tribunal de Setúbal e recorreu para a Relação de Évora, que lhe suspendeu a pena.
Mas o arguido recorreu ainda para o TC, que considerou a lei inconstitucional e acabou absolvido.