Trump contra Harvard: "A vida nos EUA é mais dura e incerta para os alunos internacionais"
Não se sabe quantos portugueses estudam ou trabalham na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos da América. No total, os estudantes internacionais compõem cerca de 27% da comunidade académica da prestigiada instituição fundada em 1636, que tem estado debaixo de fogo do presidente Donald Trump.
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Entre 2015 e 2021, Inês Torres fez o doutoramento em egiptologia (estudo da civilização egípcia) na Universidade de Harvard. Chegou a dar aulas na instituição durante três anos e trabalhou durante um ano no Harvard Art Museums. De volta a Portugal, aos 34 anos, é bolseira de investigação pós-doutoral e está integrada no CHAM - Centro de Humanidades, uma unidade vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Inês Torres faz parte de um conjunto de portugueses que estudaram em Harvard e que olham hoje com preocupação para as recentes decisões do presidente dos Estados Unidos contra a prestigiada instituição académica, que incluem a proibição de matrículas de alunos estrangeiros.
A investigadora portuguesa acredita que Donald Trump reconhece o poder e o peso de Harvard não só na sociedade americana, como em todo o Mundo. "É nas universidades que se formam cidadãos e cidadãs com capacidade de pensamento crítico, que se desconstroem ideologias autoritárias e que se compreende a verdadeira complexidade do que nos rodeia, permitindo a partilha de perspetivas diferentes da nossa", diz Inês Torres.
Apesar de reconhecer que não há "universidades perfeitas" e de acreditar que muitas instituições perpetuam o "status quo" (os ex-alunos e as famílias que doam dinheiro às universidades continuam a ter muito peso, sobretudo nas admissões), a portuguesa de 34 anos afirma que a administração Trump tem noção da importância do Ensino Superior, caso contrário "não se preocuparia em tentar controlar o que é aí dito e feito".
Regras de Trump
Desde que tomou posse em janeiro deste ano, o presidente norte-americano fez uma lista de exigências a várias universidades norte-americanas, sob ameaça de quebra de financiamento caso não cumprissem com as novas regras.
Desde a revisão dos conteúdos que são lecionados até à identificação de alunos que participaram em protestos pró-Palestina, Trump diz querer libertar as instituições de Ensino Superior do "antissemitismo" e da cultura "woke", um movimento de consciência social que tem sido associado de forma pejorativa não só à Esquerda, como ao cancelamento de pessoas e instituições.
Harvard não cedeu às exigências de Trump, o que levou a administração dos EUA a cancelar o financiamento à instituição e a ordenar a proibição de matrículas de estrangeiros. No final de maio, uma juíza do Tribunal Distrital do estado de Massachusetts bloqueou a decisão do presidente dos EUA. Porém, na passada quinta-feira, o líder republicano assinou uma ordem executiva que proíbe a entrada de estrangeiros no país, cujo propósito é estudar em Harvard.
Grande desilusão
José Tenório de Figueiredo, presidente do Harvard Club of Portugal, um clube composto por antigos alunos portugueses de Harvard, aponta que "dezenas" de portugueses poderão ser afetados pela decisão de Trump. "É natural que as pessoas estejam assustadas e com a vida em suspenso. Um investigador de mestrado ou doutoramento em Harvard tem um projeto perspetivado para anos. Mesmo uma candidatura a Harvard [de novos alunos] é algo que nunca demora menos de um ano. Uma pessoa que se tenha candidatado e já tenha pago taxas [de inscrição] vê isto com uma grande desilusão", explica.
O Harvard Club of Portugal tem cerca de 350 antigos alunos portugueses como membros.
O JN questionou o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério da Educação, Ciência e Inovação sobre o número de portugueses a estudar na universidade de Harvard e se o Governo estava a prestar algum tipo de apoio aos cidadãos potencialmente afetados pelas novas regras de Trump. Porém, não obteve resposta em tempo útil.
Em meados de maio, Paulo Rangel, ministro dos Negócios Estrangeiros, disse a alguns órgãos de comunicação social que a tutela não tinha conhecimento do número de alunos portugueses em Harvard, mas admitiu estar preocupado os efeitos das medidas de Trump.
Cuidar dos alunos
Como antiga estudante internacional de Harvard, Inês Torres conta que "a vida nos EUA é bastante mais dura, precária e incerta" para os alunos estrangeiros, nomeadamente devido ao financiamento disponível, aos vistos, às possibilidades de trabalho, à distância da família e à falta de rede de apoio. "A decisão do governo americano coloca em risco não só o percurso académico de vários milhares de estudantes, por não lhes permitir continuar com a sua investigação e terminar o seu grau académico, mas, também, tem um impacto extremamente negativo nas suas vidas pessoais", salienta.
José Tenório de Figueiredo acredita que a universidade de Harvard estará já prestar apoio aos estudantes internacionais, uma vez que terá todo o "interesse em manter" estes alunos. "Harvard é muito cautelosa neste tipo de temas e muito cuidadosa com os seus alunos e estará a fazer tudo para apoiá-los e fazê-los ultrapassar esta situação", diz o presidente do Harvard Club of Portugal.
Em 2023, 3508 pessoas saíram de Portugal e entraram com o visto de estudante ou de intercâmbio nos Estados Unidos, segundo o relatório público do Departamento de Segurança Interna dos EUA. Os dados relativos a 2024 ainda não foram disponibilizados.
Ainda que a vários quilómetros de distância e já fora dos corredores de Harvard, Inês Torres admite que a tomada de posição da universidade norte-americana face a Trump influencia todas as outras instituições de Ensino Superior espalhadas pelo Mundo. "A democracia vive, em muito, da liberdade académica e científica para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. E, por isso, considero que a luta de Harvard pela sua liberdade académica e pelo direito ao financiamento científico é, na verdade, uma luta de todos e todas nós, dentro e fora dos EUA", conclui.