Três queimados dos fogos de Pedrógão contam o que viram naquele dia e o que mudou nas suas vidas. "Mudou tudo".
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Ela abafa, esbraceja, está cercada, está tudo em chamas, ela cai, os dois braços estão a arder, uma perna está a arder, e ela repete, acudam, acudam - e depois acorda com o som da sua voz e ouve-se ainda a redizer, cada vez mais baixinho, acudam, acudam. Lídia Fernandes Silva, 59 anos, reformada por invalidez, nascida e vivida no Souto Fundeiro, Castanheira de Pera, tem pesadelos desde os fogos de 17 de junho de 2017 que mataram 66 pessoas, feriram mais de 200, deixaram muitos queimados. A sua dieta passou a incluir Tofranil e Alprazolam Mylan, psicoativos que bloqueiam pânico, ansiedades, a dor crónica. Naquele dia desfigurado para sempre em escuridão, Lídia defendia a sua casa, é a terceira à entrada do Souto, é branca, muito baixinha. E Lídia acabou a noite como a casa, quase toda queimada.
Filipa Rodrigues tem 25 anos, a cara muito clara, é bonita, não tem namorado, e anda a sonhar com outros acidentes, outros incêndios em que nem sequer se queimou. O pior é quando sonha que a sua irmã de nove anos está a arder e ela não faz nada, fica só a ver.
Filipa, que foi a primeira de oito mulheres a entrar nos Voluntários da Castanheira em 2011, estava no autotanque vermelho VFCI-04 que cruzava a EN236-1 à hora do forno infernal que desfez só ali 31 pessoas num tapete de morte - e que depois foi arpoado por um Mercedes prateado a derreter que vinha em sentido contrário com um casal lá dentro já a arder.
Ela viu tudo sem nada poder fazer - ou melhor, tudo fizeram, ela, o chefe Tomé, o Rui Rosinha, o Gonçalo da Conceição, o bombeiro-mártir que três dias depois iria falecer e que expôs tudo e ainda a vida sem os alcançar. E Filipa, que tem a cara cândida outra vez a escorrer, diz que nunca o esquecerá.
Estes três queimados graves, doentes crónicos para sempre, estão entre os 30 que o XI Congresso Nacional dos Queimados vai amanhã revelar, no encontro anual que este ano é em Pedrógão. É um número da calamidade que faltava revelar [ler ao lado].
José Carlos Santos
"E ela chega-se e diz, pai, és do meu sangue, pai, não vais morrer"
José Carlos Santos, 38 anos, pai de Leonor, nove anos, marido de Patrícia David, 30 anos, esteve internado 52 dias nos Queimados de Coimbra, 26 dias em coma induzido, mais seis meses completos na Unidade de Cuidados Continuados de Pedrógão, onde mora. É um homem grande, cheio de amabilidades, move-se em gestos mudos lentamente e não tem vergonha de chorar. Quando a filha teve autorização para o ver pela primeira para o abraçar, a pequenina diz-lhe muito direita, "pai, és do meu sangue, não vais morrer", e agora ele põe-se direito como ela e põe-se outra vez a chorar.
Lídia Fernandes Silva
"E quando isto passar, vão-se esquecer de nós, e como vai ser?"
"Por agora" - estamos de novo nas Lídia, no Fundeiro, a casinha branca já está pintada, renovada, tinha seguro, diz a mulher - "por agora, ainda vai dando, mas como vai ser quando o apoio dessa lei especial de um ano se acabar? A minha reforma é de 300€, o meu marido, é o João, é três anos mais velho que eu, teve um AVC em fevereiro, vai ficar com um braço quedo, e uma perna, a fala essa já recuperou, graças a Deus, mas não vai poder trabalhar, a reforma dele também é fraquinha. E e o meu filho, ele é o Diogo, faz 22 anos, ele está lá dentro no quarto, não quer sair, ele também se queimou, mas menos que eu". E Lídia continua, "estou afetada dos dois braços, estive internada três meses, o fogo apanhou-me no pescoço, nos pés, na perna esquerda, na direita foi pouquinho, e tenho que meter este colete, foi-me dado, não o podia pagar, custa 500€ e o meu filho não tem nenhum. E os cremes, ai são tão caros, cada boião são 49€, é da marca ATL, tenho que o dividir com o meu filho, não nos dá nem para um mês. E depois, e depois quando esta atenção passar, e depois quando se esquecerem de nós, e depois como vai ser?".
José Carlos
"O dinheiro por que demora? Precisamos mais do que os mortos"
A primeira coisa que vemos quando José Carlos abre a porta da casa são as suas densas sobrancelhas e depois os olhos grandes, muito pretos, as pestanas recurvadas. E depois vemos que está queimado. Requeimou-se todo no dia cavernoso, cortava lenha na Ameixoeira, ficou cingido debaixo da onda vermelha e do vento que rugiu sem parar, 900 graus a queimar.
"Pernas, pés, braços, mãos, abdómen, a minha cara", diz ele a apontar os enxertos de pele que tirou de uns lados para outros para a tez poder sarar, agora tem que usar o fato compressor. "Não o posso largar por dois anos, e nunca mais posso apanhar sol, é um fato às peças, aperta-me a pele, tem que ser, esta máscara só a ponho para dormir."
E José Carlos louva a seguradora, "são impecáveis, incansáveis, não é o que se poderia pensar, é o seguro da empresa da Patrícia, é onde trabalho, sou madeireiro, ainda bem, senão não conseguíamos pagar, só o fato inteiro são 5 mil euros, mais as pomadas, os comprimidos, a fisioterapia, os psicólogos, temos gente a ajudar".
Mas a indemnização ainda não veio, "não se percebe a demora, um ferido precisa muito mais do que um morto, mas as famílias dos que morreram, Deus os ajude, já receberam todas, e nós, que somos crónicos, continuamos sem receber". E nisto entram três crianças, a Leonor corre logo ao pai para o abraçar, as outras duas ficam ali encabuladas, e o José Carlos levanta-se para se fotografar. "Se pudesse pedir um desejo?", devolve ele a abrir muito os olhos. "Trabalhar. Queria trabalhar já. Sentir-me útil. Governar a casa. Voltar a ser normal. O que mais me custa é isto: deixei de ser normal."
Filipa Rodrigues
"O meu pai viu-me queimada e perguntou quem é que eu era"
"Até a abril foi o pior", disse Filipa, "já não aguentava ficar a olhar para a parede. Ia à fisioterapia, ando lá desde março, agora é só dia sim dia não, já foi todos os dias, e vinha para casa e depois parecia que enlouquecida, aqui muda. A minha mãe saía para trabalhar, chama-se Olga, o meu pai saía para trabalhar, ele é bombeiro, é Pedro, sim, é por causa dele que sou bombeira, saíam todos e eu que ficava a fazer? Nada, ficava a olhar para a mesma parede e a tomar comprimidos para não enlouquecer. Depois à noite tinha que tomar mais para dormir e às vezes não dormia, e aquilo vinha tudo outra vez."
Mas agora é diferente, diz a Filipa, "já ganhei autonomia, já consigo conduzir, não há um dia que não vá lá abaixo, aos bombeiros, quem me dera voltar já a trabalhar, sim no quartel, quero continuar a ser bombeira, sou bombeira, mas também trabalho no escritório de uma serração, é a Serração Progresso, também ardeu toda, mas eles já estão a laborar".
Filipa pára, respira, tem outra lágrima outra vez a cair, agora são duas, ela quer continuar. "Só queria voltar ao meu normal, mas já nada vai ser normal, pois não, mudou tudo, mudou para sempre, não sei, se calhar, se calhar vem aí um mar de rosas, não sei", e esta frase já lhe sai a sumir.
Filipa, que tem apoio do seguro dos bombeiros e está de baixa estatal, encadeia tudo outra vez: "Queimei-me nos dois braços e nas mãos, e nas duas pernas, e no rabo, e na cara. Tive que tirar pele das virilhas, onde não queimou, já fiz quatro cirurgias, já tive pele artificial, foi no joelho, mas rejeitou. Já passei por três hospitais, estive internada até agosto, depois vim para casa, depois voltei em novembro, saí em dezembro, em janeiro tive a operação, foi a plástica, a cara já está bem, esteve muito mal, os óculos derreteram-me todos na cara com o fogo, não foi bom, o meu pai quando me viu, logo na noite do 17, ainda antes de ir ao hospital, só cheguei a Coimbra à meia-noite, estive quatro horas a queimar, só a pôr água, ele nem me reconheceu, perguntou quem é que eu era, sou eu, pai, e depois ele desatou a gritar".