Mais de dois terços dos médicos (67%) que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS) estão pouco ou nada satisfeitos com o setor e a vontade de bater com a porta é muita: nos próximos doze meses, mais de um quarto (26%) dos clínicos tenciona deixar a unidade de saúde onde trabalha ou conjugar com a clínica privada.
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O estudo "Fatores de decisão na carreira médica", realizado pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), apresentado ontem, espelha o descontentamento dos médicos que trabalham no SNS por oposição aos que exercem no setor privado, mas também as expectativas dos futuros médicos. Que, confirma-se agora, vão muito para lá da atividade clínica.
As razões do descontentamento no SNS não deixam margem para dúvidas:75% apontaram a remuneração base como principal motivo de insatisfação;63% a carência de recursos humanos e/ou equipamentos;e 47% identificaram o excesso de doentes com impacto no tempo e na qualidade.
Como pontos fortes do SNS, que são também as fraquezas do privado, foram apontados o mix/diversidade de doentes (68%); a formação e trabalho em equipa (64%) e a participação/colaboração em investigação clínica (40%).
Valorizar quem está em vez de contratar mais
Alexandre Lourenço, presidente da APAH, e Miguel Guimarães, bastonário dos Médicos, olham com preocupação para a insatisfação com os salários. "Na Irlanda, um médico em início de carreira ganha 150 mil euros por ano; em Portugal ganha 40 mil", compara o administrador hospitalar, considerando que, neste momento, é melhor valorizar os que estão no SNS do que estar a contratar mais.
"Os médicos portugueses são os que ganham pior em toda a Europa e não querem continuar a trabalhar assim. Estamos num momento crítico e ninguém está a ter coragem de mudar", salienta Miguel Guimarães.
Com uma amostra de 2005 participantes (médicos e estudantes de Medicina), o estudo aponta aos próximos 12 meses: enquanto 78% dos médicos que estão no privado querem manter-se; no público são apenas 46%. E destes, quase metade revelam elevados níveis de insatisfação.
As expectativas dos futuros médicos também vão prejudicar o SNS. Segundo o estudo, apenas 77% tencionam trabalhar no público após o primeiro ano de internato e 43% querem ir para o privado. Dos que tencionam dedicar-se a outras áreas da medicina (17%), mais de metade gostaria de trabalhar em investigação.
"As organizações têm de se adaptar às pessoas e não o contrário", diz Alexandre Lourenço, desafiando os hospitais a ouvirem os seus trabalhadores e a tutela a olhar este estudo "como uma ferramenta para fazer políticas de recursos humanos de forma esclarecida".
Insatisfação atinge várias especialidades médicas
No SNS, todas as especialidades médicas apresentam elevados níveis de insatisfação, mas há algumas mais críticas. É o caso da Imuno-Hemoterapia (com insatisfação acima dos 80%), da Ginecologia-Obstetrícia, Radioncologia e Endocrinologia-Nutrição (80%). Na Ortopedia, Psiquiatria, Oncologia Médica, Neurologia, Pneumologia e Medicina Interna há também altos níveis de desmotivação (entre os 65% e os 80%).
Para Alexandre Lourenço, a pressão associada a algumas especialidades, como a Medicina Interna nos Serviços de Urgência, as diferenças de salário do setor público face ao privado e questões como falta de equipamentos explicam os elevados graus de insatisfação de algumas áreas.
20% saíram num ano
98% dos médicos do privado já exerceram no SNS - resulta do processo formativo - mas 20% deixaram o SNS no último ano. O número "exageradíssimo" estará relacionado com o fim da proibição de saída do SNS durante o estado de emergência (abril de 2021), diz Alexandre Lourenço.
8% decididos a abandonar setor público
Entre os médicos do SNS, 8% querem sair no próximo ano, 28% estão indecisos e 18% querem ter funções nos dois setores.