Desconhecimento e resistência de médicos persistem. Num ano, Tilray vendeu 548 embalagens.
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A primeira e única preparação à base de canábis autorizada em Portugal chegou às farmácias há cerca de um ano, mas serve poucos doentes. Desde abril do ano passado, foram vendidas cerca de meio milhar de embalagens, sendo que há doentes que usam mensalmente entre três a seis unidades. Ou seja, poderão ser menos de 20 os doentes a beneficiar do produto. Dificuldades no acesso à prescrição, motivadas por desconhecimento e resistência dos profissionais de saúde, bem como o preço elevado, serão alguns dos entraves a uma maior adesão à terapêutica.
No último ano, a empresa Tilray reportou a venda de 548 embalagens de flor seca com 18% de THC (canabinoide), segundo referiu o Infarmed ao JN. Após um início conturbado, com problemas na prescrição eletrónica e na distribuição às farmácias, a comercialização entrou em modo cruzeiro.
Apesar de pouco expressivos, os números não estão a defraudar as expectativas. Ao JN, a empresa realçou que "não é expectável que as terapêuticas à base da planta da canábis para fins medicinais sejam prescritas a milhares de doentes a nível nacional", porque não são resposta de primeira linha. O expectável é que "estejam acessíveis para que possam ser prescritas aos doentes que não vêm a sua condição médica resolvida pelos fármacos previamente administrados", referiu José Tempero, diretor global de assuntos médicos da Tilray Medical. O responsável adiantou que "têm sido vendidas aproximadamente 50 unidades por mês", um pouco mais do que o número reportado ao Infarmed, mas não especificou o número de doentes em tratamento porque as dosagens variam consoante as necessidades dos utilizadores.
Para a empresa, não há limitações no acesso, mas um "desconhecimento normal pelo facto de os canabinoides não fazerem parte do arsenal terapêutico dos profissionais de saúde, até muito recentemente". Além disso, nota, "não ocupam uma parte relevante dos planos curriculares na maioria das universidades".
produtos em avaliação
Já o Observatório Português para a Canábis Medicinal (OPCM) conhece bem os entraves. "Temos muitas pessoas que nos dizem que há desconhecimento e resistência dos médicos na prescrição", assegura Carla Dias, presidente do OPCM.
A regulamentação da lei que permite a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais é de 2019, mas, até agora, há apenas um produto disponível nas farmácias. Segundo o Infarmed, estão em curso dois pedidos de autorização de colocação no mercado (ACM) de preparações à base de canábis. Um relativo a flor seca para inalação por vaporização e outro relativo a uma solução oral. Ambos aguardam respostas por parte das entidades requerentes, adiantou.
A referida solução oral é também um produto da Tilray, confirmou a empresa, garantindo que está a fazer os "melhores esforços para que esta preparação fique acessível a todos os doentes que dela necessitem ainda no decorrer do presente ano".
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150 euros é o preço do produto da Tilray à venda nas farmácias. A flor seca com 18% de THC vem em embalagens de 15 gramas e há doentes que precisam de entre 3 a 6 por mês.
Sete indicações
As substâncias à base de canábis para fins medicinais podem legalmente ser prescritas quando os tratamentos convencionais não resultam ou provocam efeitos adversos relevantes, em sete indicações terapêuticas: espasticidade associada à esclerose múltipla; estimulação de apetite nos cuidados paliativos; náuseas e vómitos em tratamentos oncológicos ou sida; dor crónica; síndrome de Tourette; epilepsia e glaucoma.
Testemunho
Médica não queria renovar receita e chamou-lhe "drogado"
Um problema com a aplicação móvel SNS24, na qual recebe a renovação automática da receita para comprar na farmácia as embalagens de flor seca de canábis, obrigou Bryan Custódio a deslocar-se ao Centro de Saúde de Vila Nova de Milfontes no passado dia 18 de abril. A médica de família estava de licença de maternidade e foi atendido por uma clínica que estava a substituí-la. Quando pediu a renovação da prescrição, nem queria acreditar na resposta.
"Disse-me que era contra drogas e para eu me ir embora", conta Bryan. Atordoado com a reação da médica, pediu-lhe que apresentasse por escrito a recusa em passar a receita para poder justificar um novo pedido de consulta.
A médica reagiu, ligou à diretora do centro de saúde e foi aconselhada a passar a receita. "Disse-me que só ia passar uma e porque era obrigada, mas que nunca mais me queria ver, porque não queria drogados nas suas consultas e a entupir o centro de saúde", relata o utente que, de imediato, apresentou reclamação.
Bryan Custódio, 22 anos, sofre de um transtorno funcional que lhe provoca parestesias, movimentos involuntários e cãibras nas pernas. Por causa da doença, teve um acidente grave, que resultou em várias fraturas e, desde então, tem dor crónica na lombar e cóccix. Há vários meses que toma o produto da Tilray para aliviar as dores e as fortes crises.
"Até aqui, o meu problema era o preço, agora que consegui resolver essa parte, vem uma médica chamar-me drogado e recusar-se a renovar as receitas que a minha médica de família prescreveu, só porque é contra", refere, indignado. A única embalagem que conseguiu comprar dá para dez dias. Ou arranja mais duas receitas ou terá de ratear a dose e sujeitar-se às dores.
Confrontada pelo JN, a ARS do Alentejo informou que a Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, à qual pertence o Centro de Saúde de Vila Nova de Milfontes abriu um processo de averiguações interno.