Especialistas alertam para riscos inerentes a situações de défice. Mas continua a não haver consenso quanto a uma “suplementação universal”.
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Em 2020, um estudo publicado na revista científica “Archives of Osteoporosis” veio comprovar a relação difícil que os portugueses têm com a vitamina D. Na altura, dois em cada três cidadãos nacionais tinham falta desta vitamina, uma percentagem que atingia os 82% no caso dos Açores. O estudo, um trabalho conjunto entre a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, mostrava ainda que cerca de 43% da população não conseguia atingir valores normais, mesmo durante o verão. Daí que haja cada vez mais especialistas favoráveis à suplementação. E no caso das grávidas?
Antes de responder à questão, vale a pena explicar o que é exatamente a vitamina D e que funções desempenha no organismo. Responde Luís Guedes Martins, diretor do serviço de obstetrícia do Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN), no Porto, e professor de Obstetrícia do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS). “É uma vitamina solúvel em gordura que pode ser obtida através do consumo de leite, sumos com polpa, óleos de peixe e suplementos alimentares. Adicionalmente, o nosso corpo também pode produzi-la naturalmente na pele, quando estamos expostos à luz solar. Para que possa ser utilizada pelo organismo, passa por duas transformações: primeiro no fígado, depois nos rins, onde se transforma na sua forma ativa.” É nesse estado que ajuda à absorção do cálcio no intestino, “reforçando o crescimento e fortalecimento dos ossos”.
A questão, como lembra Carla Rêgo, pediatra no Hospital da CUF, no Porto, e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), é que “90% da síntese de vitamina D é cutânea”, o que implica que, para termos os níveis desejáveis desta vitamina, teríamos de ter uma exposição regular ao sol, não apenas exposições pontuais. “Ora, como mudámos o nosso estilo de vida, deixámos de ter a principal síntese de vitamina D, que é a cutânea”, constata. Daí que o défice seja “transversal à população”. Aliás, Carla Rêgo, que é também investigadora do CINTESIS@RISE, unidade de investigação com sede na FMUP, conduziu, já em 2017, um estudo que concluiu que “metade das crianças e adolescentes saudáveis da região do Porto” apresentavam níveis de vitamina D “abaixo do normal”. Acresce que há fatores que contribuem para aumentar o risco de défice, designadamente “a pele mais escura [a pigmentação reduz a capacidade de a pele produzir vitamina D], as questões religiosas, a latitude da radiação solar”. Além da obesidade, em que o risco de défice existe independentemente do estilo de vida, uma vez que o tecido gordo “retém a vitamina D”.
Mas afinal, quais são as consequências do hipovitaminose D, no geral? Carla Rêgo explica que “existem recetores de vitamina D em todos os órgãos do nosso corpo”, sendo que, se estes não estiverem ocupados, o funcionamento do órgão fica ameaçado. “Os nossos órgãos são como uma engrenagem: se algo falhar, podem continuar a funcionar, mas a função fica comprometida”. E isto é válido tanto para o sistema nervoso central, como para os sistemas imunitário, digestivo, cardiovascular, entre outros. Portanto, e respondendo à questão que lança este parágrafo: o défice de vitamina D acarreta um maior risco de doenças neurológicas, psiquiátricas, cardiovasculares, autoimunes, neoplásicas. Além de problemas ósseos, por causa do tal papel da vitamina D na absorção do cálcio.
Impacto no bebé
Feita a devida contextualização, voltemos à mulher grávida. “Durante a gravidez, a deficiência grave de vitamina D na mãe pode resultar em problemas no desenvolvimento ósseo do bebé, como raquitismo congénito e até fraturas ao nascer”, alerta Luís Guedes Martins, que deixa uma outra chamada de atenção: “Estudos recentes indicam que muitas mulheres apresentam níveis baixos de vitamina D durante a gravidez, especialmente as que pertencem a grupos de risco, tais como: vegetarianas, mulheres com pouca exposição ao sol – por exemplo, que vivem em climas frios ou usam vestuário que cobre grande parte do corpo –, pessoas com pele mais escura.” Sendo que bebés de mães em défice “também correm risco” de o ter.
Carla Rêgo recorda que, durante a gravidez, a mãe “oferece os nutrientes ao bebé através da placenta” e que, para que o bebé cresça bem, com a quantidade de macro e micronutrientes desejável, é preciso que a mulher esteja “adequadamente nutrida”, tenha uma placenta que funcione bem e bons níveis séricos de vitamina D. “Quando uma destas coisas não funciona, o bebé tem compromisso de crescimento. Isto porque, qualquer situação de compromisso dos níveis séricos na mãe, vai programar o bebé para crescer também com um compromisso do número de recetores.” Conclusão: terá risco acrescido de hipovitaminose D crónica e complicações associadas.
Por tudo isto, Ana Lúcia Nogueira, ginecologista-obstetra e diretora clínica da Clínica Sabeanas, em Carcavelos, mostra-se amplamente favorável à suplementação com vitamina D durante a gestação. “Há vários estudos que relacionam a suplementação durante a gravidez com uma melhoria do sistema imunológico da mãe e uma redução do número de infeções e dos partos pré-termo.” A especialista refere ainda benefícios noutras áreas: “A investigação também vai mostrando que a vitamina D melhora a sensibilidade à insulina e a função das células beta-pancreáticas. Além de que as mulheres que têm níveis de vitamina D abaixo de 30 [ng/mL] correm maior risco de pré-eclâmpsia [complicação da gravidez caracterizada por pressão arterial elevada].” Há ainda a considerar o possível impacto na saúde óssea dos bebés. O MAVIDOS (Maternal Vitamin D Osteoporosis Study), estudo realizado no Reino Unido, que arrancou em 2016, concluiu que, aos quatro anos, as crianças cujas mães foram suplementadas com vitamina D durante a gravidez tinham uma densidade óssea maior, em comparação com o grupo placebo. Em setembro do ano passado, o mesmo estudo registou que os benefícios persistiam até aos seis, sete anos.
Ainda assim, a evidência científica sólida leva o seu tempo. Luís Guedes Martins, do CMIN, entende que “até ao momento não há dados suficientes para recomendar a suplementação de vitamina D como forma de prevenir o parto prematuro ou a pré-eclâmpsia”. Admite, no entanto, que “embora a segurança de doses muito altas ainda não esteja completamente estudada, é considerado seguro o consumo de até quatro mil UI por dia durante a gravidez ou a amamentação”. Também Carla Rêgo considera que, na dose adequada, “não há risco de toxicidade”. Ainda assim, não defende uma “recomendação universal”. “O que me parece fundamental é avaliar os níveis séricos de vitamina D, ainda antes de engravidar, e depois durante a gravidez, e se necessário suplementar, sobretudo nos meses de outono, no inverno e na primavera. Sendo que em grupos de risco [já mencionados neste artigo] e em mulheres que estão a dar de mamar essa suplementação é fundamental”, completa a pediatra.