Rede de apoio aos ex-combatentes com stress pós-traumático só chega a Lisboa, Porto, Braga e Tondela. Há quem faça 300 quilómetros para poder ter consultas.
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Jorge Gouveia, ex-combatente no Ultramar, passou dois anos na guerra colonial em Moçambique, entre 1967 e 1969. Sofre de stress pós-traumático. "É um vírus que transmitimos às mulheres, aos filhos, muitos criados em ambientes de turbulência." Só começou a receber apoio psicológico 25 anos depois de regressar.
Estima-se que haja mais de 100 mil pessoas a sofrer de trauma de guerra em Portugal. Há uma Rede Nacional de Apoio, mas não chega a todo o território. Ontem, comemoraram-se os feitos históricos dos antigos combatentes na Batalha de La Lys.
Aos 75 anos, Jorge vive com a mulher e chegou a tomar seis medicamentos por dia. "Sobretudo ansiolíticos, para dormir. Porque quando aqueles pesadelos vêm, é transpirar, é almofadas pelo ar, é gritar. Isto é uma cassete que está cá dentro e quando rebobina começamos a ver tudo o que passámos." Tem marcado na memória o dia em que chegou de Moçambique: 3 de abril de 1969.
Não fala sobre o que lá passou, diz cumprir um "código de honra". "Quando esta geração morrer, ninguém vai saber de facto o que aconteceu. Deixou marcas para o resto da vida." Vive desconfiado, com medo de barulhos, irritabilidade. "Na altura, ninguém acreditava no trauma. Dizia-se que só os fracos vinham doentes. Chegámos a Lisboa, fomos despejados e mandaram-nos para casa. Ninguém se preocupou."
Durante mais de 20 anos, até à criação da primeira consulta de stress pós-traumático, só os combatentes com deficiências físicas receberam tratamento e apoio do Estado. Jorge Gouveia começou a ser seguido 25 anos depois de regressar, em 1994, ano em que surgiu a associação Apoiar, em Lisboa, que apoia antigos combatentes.
"uma bomba no cérebro"
Foi criada no hospital Júlio de Matos por ex-combatentes que lá faziam terapia de grupo com o psiquiatra Afonso de Albuquerque, um dos primeiros a debruçar-se sobre o trauma de guerra. "Ele deu-nos força e ajudou-nos a criar a associação", conta Jorge Gouveia. O psiquiatra diz que o stress pós-traumático "não tem cura", é "uma espécie de bomba no cérebro da pessoa", que pode explodir meses ou anos depois. Mas podem mitigar-se os efeitos com acompanhamento.
Só em 2002 é que viria a ser criada a Rede Nacional de Apoio (RNA), que inclui cinco associações que o Ministério da Defesa Nacional apoia com uma verba por consulta. Mas continua a ser insuficiente. Só há apoio em Lisboa, Braga, Porto e Tondela. Ao todo, acompanha 2073 utentes.
Na Apoiar, que só trata stress pós-traumático, há consultas de psicologia, psiquiatria, clínica geral. Tem 280 utentes com consultas regulares, 170 são ex-combatentes, o resto são mulheres e filhos, que também sofrem com o problema. Jorge é hoje presidente da Apoiar. "Muita gente ainda não está a ser acompanhada porque nos locais onde vivem não há nada. Principalmente no interior. Há pessoas a percorrer 300 quilómetros para ir a Lisboa. Utentes de Viseu, do Alentejo. O SNS não dá resposta a isto. Não é por acaso que estamos a fazer este trabalho."
Segundo a secretária de Estado dos Antigos Combatentes, Catarina Sarmento Castro, foi feita uma auscultação das necessidades de assistência e um levantamento do número de utentes da RNA. Estará previsto um alargamento do apoio médico, psicológico e social prestado pela rede.