Bastonário: "Só hoje, quatro médicos contaram-me que já foram alvo de agressão"
Miguel Guimarães Bastonário da Ordem dos Médicos, candidato único a novo mandato, defende que os utentes agressores devem ser excluídos da lista do médico de família e mudar de centro de saúde.
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Três anos depois de ter sido eleito com mais de 70% dos votos, Miguel Guimarães candidata-se ao cargo de bastonário sem adversários. O principal desafio é recuperar os médicos do Serviço Nacional de Saúde que estão desmotivados e exaustos e têm sido "agredidos" pela tutela. Sobre a violência contra os profissionais, garante que só conhecemos a ponta do iceberg e classifica de "ridícula" a solução apresentada pela ministra.
Não há mais nenhum candidato a bastonário. É sinal de que ninguém ousa desafiá-lo ou de que ninguém quer o cargo?
Não sei dizer. Mas posso assegurar que o cargo é cada vez mais difícil, portanto, é sempre admissível que as pessoas neste momento não queiram ser bastonário da Ordem dos Médicos (OM). Mas eu espero que continuem a participar ativamente porque a força da OM é importante para salvaguardar o acesso aos cuidados de saúde.
Qual o principal desafio do próximo mandato?
É recuperar os médicos, que têm sido alvo de muitas agressões, não só as físicas que ocorrem com alguns doentes, mas por parte da tutela. A forma como a tutela se tem dirigido aos médicos leva a que estejam cada vez mais desmotivados. Além disso, estão exaustos.
O caso do bebé de Setúbal foi o mais difícil destes três anos?
Claramente, foi o caso mais difícil de gerir neste mandato.
Alguma vez imaginou ter de pedir desculpa aos portugueses?
Temos de assumir as nossas responsabilidades. No caso do bebé de Setúbal [que nasceu com malformações graves não detetadas nas ecografias], em que o Conselho Disciplinar (CD) do Sul nem tinha começado a investigar os cinco processos que o mesmo médico tinha desde 2013, a única alternativa digna era assumir a responsabilidade e pedir desculpa. Infelizmente, as outras entidades que falharam, a Entidade Reguladora da Saúde, a ARS de Lisboa e Vale do Tejo e o Ministério da Saúde não assumiram as responsabilidades nem pediram desculpa.
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Apesar da pressão, ainda não há decisão sobre este médico.
Penso que brevemente haverá uma decisão sobre os vários processos do médico. Espero que isto seja rapidamente resolvido e seja dado a conhecer publicamente a decisão do Conselho Disciplinar.
Criou os Tempos-Padrão das Consultas e Exames. Pode assegurar que já não há consultas de cinco em cinco minutos?
Não, não posso. Quem tem obrigação de assegurar isso é o Ministério da Saúde, no setor público e no privado. Voltando ao bebé de Setúbal, aparentemente, o obstetra estaria a fazer as ecografias demasiado rápidas. Se existisse fiscalização, se fossem feitas auditorias regulares, já se tinha detetado que aquele médico não estava a fazer as ecografias de acordo com as boas práticas. É preciso que o Ministério da Saúde ajude a cumprir este regulamento. Isto não é só para os médicos, isto protege os doentes.
Há uma escalada de violência contra profissionais de saúde ou há mais notificações?
Há uma escalada de violência. Os casos notificados têm aumentado de forma exponencial. Há três anos, pedi que as agressões aos médicos fossem tipificadas como crimes públicos, para terem prioridade na análise jurídica. Infelizmente, entendeu-se que não devia ser assim. E aquilo que vemos é apenas a ponta do iceberg. Ainda hoje [quinta-feira], nas visitas que fiz, pelo menos quatro médicos relataram-me que foram alvo de agressões e não reportaram.
Mas porquê?
Porque não estão para perder tempo, porque têm medo, porque acham que não adianta e têm alguma razão. Mas, se fossem reportados todos os casos de violência, provavelmente o Governo já tinha tomado uma atitude, sendo que a que foi tomada é ridícula.
Chamou homeopático ao gabinete de segurança anunciado.
Porque não resolve nada. Criar um gabinete de segurança junto da ministra da Saúde com um oficial de segurança dedicado ao Ministério da Saúde só se for para garantir a segurança da ministra da Saúde. Até dava um bom "sketch" para o Ricardo Araújo Pereira. Isto é estar a brincar com as pessoas.
O utente que agride o médico de família deve ficar fora da lista?
No caso dos centros de saúde, se um doente agride um médico já não tem condições para continuar com aquele médico. Deve imediatamente sair da lista e, provavelmente, mudar de centro de saúde.
Mas deve ser obrigado a mudar?
É uma medida que pode ter alguma importância, mas tem de ser devidamente estudada. Sobre agressões reiteradas não tenho a menor dúvida: quem agride duas, três vezes um profissional de saúde, não deve estar no SNS.
No caso da enfermeira do Hospital de Santa Maria, o agressor ficou na urgência após o crime.
É inaceitável, devia ter sido imediatamente detido, a não ser que precisasse de cuidados verdadeiramente urgentes. Espero que nunca aconteça, mas se amanhã morre um profissional de saúde na sequência de uma agressão, os responsáveis são a ministra da Saúde e o primeiro-ministro. Há uma responsabilidade por inação.
O fim das taxas moderadoras nos cuidados primários avança em 2020. Vai melhorar o acesso?
Tenho dúvidas que possa ser uma medida eficaz e até pode ser contraprodutiva. O excesso de utilização pode levar a um aumento dos tempos de espera e a um aumento da conflitualidade.