Centenas de enfermeiros precários, há anos ao serviço dos hospitais públicos e sem qualquer perspetiva de vinculação, estão a ser ultrapassados por profissionais com menos tempo de casa, que, ao abrigo de contratos covid, são integrados nos quadros das instituições do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
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Num período crítico de combate à pandemia, a contestação ao Ministério da Saúde sobe de tom. Os enfermeiros falam em injustiça e em insuficiência nas contratações. As rescisões estão proibidas, mesmo nas mudanças dentro do SNS.
Em todo o país, muitos enfermeiros com contrato de substituição não têm perspetivas de serem integrados nos quadros do SNS, ao contrário do que está a acontecer com alguns enfermeiros com contrato covid que trabalham há menos tempo nos hospitais. O Ministério da Saúde não revela o número atual de enfermeiros em regime de substituição, mas contam-se 230 só na região do Porto e cerca de 100 no Minho, segundo o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP). Todos enfrentam o despedimento, quando chegar o colega que estão a substituir.
"Também nós estamos na linha da frente no combate à covid-19 e vemos colegas sem experiência no hospital a passar à frente, sem justa causa", denuncia Bruno Marques, enfermeiro do Hospital de Braga. Só naquela unidade há trinta enfermeiros com contrato de substituição, que reclamam "estabilidade laboral". Correm o "risco de ir para o desemprego, a qualquer momento", frisa.
912 contratos são poucos
Também as contratações até agora anunciadas pelo Ministério da Saúde não chegarão para todos os enfermeiros covid. Em outubro, o Governo aprovou a contratação de 912 enfermeiros, ao abrigo desse título, e Marta Temido sublinhou que ficava "cumprido o número previsto para a contratação este ano". O SEP garante que não chegam. "Para todo o país, a tutela quer autorizar 912 contratos. Só na região de Braga, Viana do Castelo e do Porto foram admitidos 1200 enfermeiros com contrato covid", denunciou Nélson Pinto, do SEP Minho, ao JN.
Em Gaia, há 600 enfermeiros com esses contratos e 230 de substituição. "Nos contratos covid, o Governo determina que os profissionais que, a 31 de dezembro, tiverem oito meses de contrato passarão a tempo indeterminado, caso haja vaga nas instituições. Só 167 colegas é que reúnem essas condições", avisou Fátima Monteiro, do SEP Porto.O JN confrontou o Ministério da Saúde com as denúncias dos enfermeiros, mas não obteve resposta.
"Atentado à liberdade"
A bastonária da Ordem dos Enfermeiros defende "uma estratégia bem clara entre o Governo e os sindicatos para resolver estas questões de vínculo contratual e de relações laborais, que não se colocam noutras profissões na área da saúde". Outra crítica dos enfermeiros é a proibição das rescisões, decretada por despacho ao abrigo do estado de emergência a 19 de novembro. Estão proibidas as saídas de todos os profissionais do SNS, mesmo daqueles que vão para outro hospital público.
Cerca de 20 profissionais do Hospital Santa Maria, em Lisboa, já viram rejeitado o pedido de rescisão. Afiançam que estão a "exercer contra a vontade" e falam num "atropelo de direitos". Gorete Pimentel, do Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos, critica esta "espécie de requisição civil" e "um atentado à liberdade e à democracia".
Impedida de mudar para perto de casa
O travão imposto pelo Governo à saída de profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), em abril e em novembro, prejudicou duplamente Vanessa Serrão. A enfermeira de 27 anos, de Braga, trabalha há quatro anos no Hospital Santo António dos Capuchos, em Lisboa. Por duas vezes, foi selecionada para mudar-se para unidades no Norte e, com o impedimento de rescisões contratuais ao abrigo do estado de emergência, foi obrigada a ficar.
"O trabalho aqui é gratificante, mas lá, pelo menos, estava perto de casa. Era a salvaguarda que eu tinha. Ia ter a família e o trabalho perto", explica. O despacho da ministra da Saúde, Marta Temido, que impede a rescisão contratual de Vanessa é justificado com a necessidade de o SNS ter "uma garantia de resposta". Contudo, das duas vezes que a enfermeira se quis mudar, ia trabalhar para outros hospitais do SNS que também precisam dela. A primeira recusa aconteceu em abril. Vanessa foi selecionada num concurso para o Hospital de Barcelos. Depois de ser chamada para iniciar funções, proibiram-na de se despedir em Lisboa. A segunda recusa aconteceu em novembro, quando foi escolhida para o Hospital de Braga.
"Continuo em Lisboa, mas isto não me aconteceu só a mim. Aconteceu a muitas outras pessoas que estavam na bolsa e foram escolhidas para Braga. Quem ficou bem classificado, está nessa situação de não poder sair", lamenta Vanessa. A enfermeira não considera justo que o Governo a impeça de escolher a sua carreira profissional, depois de ter dado tanto, até à exaustão, na linha da frente a tratar doentes covid. "Nesta pandemia, sempre estive disponível para me moverem de serviço e tivemos todos os profissionais à mercê e na linha da frente para ajudar", frisa.
Embora more em Lisboa com mais dois colegas de Braga que a apoiam, Vanessa vai mudar logo que possa, se outro hospital do Norte lhe der oportunidade: "Priva-me da vida pessoal. Já em abril estive três meses sem ir a casa para não pôr ninguém em risco. Pelo menos, lá estava perto".
"Tive o azar de ter um contrato de substituição"
O número de enfermeiros com contrato de substituição no Hospital de Braga é de cerca de 30. Ana (nome fictício) é um dos casos. Não dá a cara por medo de represálias, mas fala de "um sentimento de tristeza, revolta e algum desespero". Há enfermeiros, como Ana, que estão há mais de um ano com contrato de substituição e não acham justo que os enfermeiros com vínculo covid integrem o quadro à sua frente: "Não é injusto que os outros efetivem, porque eles merecem. O que nós achamos injusto é eles merecerem e nós não". Ana trabalha na linha da frente, lida diariamente com casos positivos e teve de mudar de casa para proteger a família. O mesmo acontece com os enfermeiros covid. No entanto, ao fim de oito meses, esses profissionais entram no quadro e os contratos de substituição vão para o desemprego, logo que chegue o colega que estão a substituir: "O esforço que eles fazem é exatamente o mesmo que eu faço em contrato de substituição". A enfermeira revela que o anúncio da integração dos enfermeiros covid no quadro desmoralizou aqueles que anseiam por um contrato sem termo: "O Hospital de Braga é muito bom, temos noção que isto não depende da administração, depende do Governo. Só que sentimo-nos esquecidos e abalou muito a nossa energia para trabalhar".
Poucos enfermeiros
Segundo o relatório "Health at Glance" divulgado pela OCDE em novembro, Portugal tem 6,9 enfermeiros por cada mil habitantes. O número está abaixo da média da União Europeia (8,2) e Portugal é mesmo o quarto país com menos enfermeiros por cada médico.
Maior classe no SNS
Com cerca de 70 mil profissionais inscritos na Ordem, a classe dos enfermeiros é a maior entre os trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde (SNS).