Lei determina que utentes com várias dívidas deviam ter processo único. Fisco recebe mais se não as juntar. Tarifas de poucos cêntimos dão origem a multas de milhares de euros que às vezes já prescreveram.
Corpo do artigo
Os utilizadores de autoestradas que têm várias dívidas de portagens são obrigados a defender-se de um processo por cada vez que atravessaram os pórticos sem pagar, independentemente de terem passado, por exemplo, durante um mês seguido. A Autoridade Tributária (AT) insiste em abrir processos individuais por cada passagem, ganhando com a multiplicação de coimas. Hoje, o Parlamento discute três propostas de vários partidos para reduzir encargos.
"Temos facilmente clientes particulares com três ou quatro mil euros para pagar", admite o advogado Pedro Marinho Falcão, do Porto, que por semana é procurado "por pelo menos dois ou três utentes" de autoestradas, sobretudo das ex-scut. O advogado confirma que "cada passagem vai somando diversas coimas e custos administrativos", o que "encharca os tribunais" com recursos de contraordenação e penhoras: "Se isto é um ato continuado, o que fazia sentido era uma coima única".
A lei das multas por taxas de portagem, de 2006, indica que constitui uma contraordenação única a passagem não paga que seja praticada "pelo mesmo agente, no mesmo dia, através da utilização do mesmo veículo e que ocorra na mesma infraestrutura rodoviária". Mesmo assim, há casos em que a AT "não faz a apensação e o utilizador tem de apresentar uma defesa por cada processo", denuncia Pedro Marinho Falcão.
A situação também é confirmada por António Marçal, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais: "Quando uma pessoa passa por um conjunto de pórticos, aquela que é a jurisprudência normal é que seja considerada apenas uma transgressão. Acontece que há muitos utentes que são notificados por cada uma dessas transgressões". Com as custas da taxa judicial e apoio obrigatório de um advogado, o contribuinte "está sempre tramado", diz Marçal.
Quando o Fisco entra em ação, se o utente não pagar, é penhorado. Ao JN, o Ministério das Finanças confirma que as multas "podem ser pagas voluntariamente, não sendo necessariamente instaurado processo de execução fiscal".
Partidos criticam regime
No projeto de lei que vai ser discutido hoje no Parlamento e em que pede uma amnistia geral para todas as multas, o BE confirma que apesar de a AT "ter o dever de apensar os vários processos pendentes contra o mesmo contribuinte, a verdade é que não o tem feito". A IL pretende limitar o valor máximo das multas, pois chegam "a arruinar financeiramente as famílias". Também o Chega apresentou uma proposta.
O advogado João Magalhães, de Braga, diz que em muitos casos as notificações da AT reportam-se a multas já prescritas: "Há centenas ou milhares delas, só que eles [Fisco] alegam a interrupção da prescrição com uma carta que muitas vezes não chegou". A falta de notificação inicial por parte das concessionárias é outra crítica. Quando o utente não paga, muitas vezes porque não recebeu a notificação, a coima é enviada para a AT que instaura a multa. Neste caso, a multa nunca é inferior a 25 euros e as custas são sempre de 76,50 euros.
Fisco ao serviço de privados
O uso da máquina fiscal para cobrar multas de privados (concessionárias) também é alvo de críticas. "Os restantes agentes económicos, perante uma dívida dos seus clientes, têm de recorrer aos tribunais. Aqui não. Uns podem socorrer-se de uma máquina poderosíssima, outros não", critica António Marçal. O BE também acompanha a posição: "Estando os serviços da AT assoberbados a instruir e conduzir milhares de processos para recuperação de créditos de privados, deixam de ter meios para investigar e combater a fraude e a evasão".
Ao JN, a Infraestruturas de Portugal não divulgou os valores em dívida nas multas das ex-SCUT.
Fisco carregou multas a 30 de dezembro de forma "perversa"
Apesar da tolerância de ponto, o dia 30 de dezembro terá sido atarefado para os funcionários da AT que carregaram, no portal das Finanças, pagamentos em dívida referentes a portagens de várias empresas. A atitude "perversa" é denunciada pelo advogado João Magalhães, que acusa o Fisco de "querer prejudicar as empresas" impedindo-as de obter a certidão trimestral de não-dívida que lhes permite aceder a benefícios fiscais. Ao JN, o Ministério das Finanças esclarece que a existência de dívidas fiscais só é impeditiva do acesso aos benefícios se a dívida não for impugnada e se mantiver "no termo do prazo para o exercício do direito de audição no âmbito do procedimento de concessão do benefício".
Propostas
BE quer amnistia total
O projeto de lei do Bloco de Esquerda prevê "uma amnistia fiscal a todos os contribuintes que tenham processos fiscais relativos ao não pagamento de taxas de portagem". Para o partido, o atual regime é "injusto, desproporcional e violento" e tem conduzido "a cobranças absurdas de valores exorbitantes" de forma "desproporcional".
IL propõe teto máximo
O projeto de lei da Iniciativa Liberal quer que o valor total cobrado, considerando a portagem, coimas e custos administrativos, em
processos de contraordenação ou de execução, "não pode exceder três vezes o valor das respetivas taxas de portagem, sem prejuízo dos juros". Às multas pendentes aplica-se o regime mais favorável, propõem.
Chega quer congelar
O projeto de lei do Chega propõe "o congelamento do valor das tarifas de portagem durante o ano de 2023". Recorde-se que o aumento das portagens para este ano foi limitado a um máximo de 4,9%, após as negociações do Governo com as concessionárias, que propunham inicialmente valores próximos de 10%, à razão da inflação.
Entrevista
"O sistema tem de ser revisto de fio a pavio", considera Sónia Covita, coordenadora de estudos na área jurídica e económica na Deco Proteste
Concorda com as propostas dos partidos?
Têm pontos positivos, mas o sistema tem de ser revisto de fio a pavio. O tema das portagens anda esquecido e a nós chegam-nos diariamente pedidos de ajuda. Há pessoas com o ordenado penhorado porque têm a dívida de uma portagem. Isto é desproporcional.
O que tem de ser mudado?
Isto começa logo quando temos, no início, condutores de primeira e de segunda. Os de primeira são os que têm Via Verde. Quem não tem, mesmo que seja o mais cumpridor possível, paga sempre a mais pelos CTT. Temos de parar, olhar para o sistema e perceber que temos de corrigir, simplificar e tornar transparente.
Recebem queixas por falta de notificação?
Todos sabemos que este sistema de notificações não funciona. Não quero desculpar o consumidor, mas a verdade é que muita gente se queixa que não recebeu as cartas iniciais. A partir daí é uma bola de neve. Se não recebe a primeira, o processo avança e, às tantas, têm um processo de execução fiscal e são devedores à AT.
Porque é que não pagam?
A maior parte das pessoas até quer pagar, só não o faz porque não sabe como fazer, quais são os prazos e é por pura ignorância e desconhecimento. Cabe ao Estado informar as pessoas que têm de saber como é que as coisas funcionam.