Há mais médicos, enfermeiros e técnicos, mas saldo global é negativo. Regresso às 35 horas agravou carências e profissionais dizem estar a trabalhar mais.
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Em nove anos e cinco meses, o Serviço Nacional de Saúde perdeu um total de seis mil assistentes operacionais e assistentes técnicos. Entre 2010 e maio último, o número de médicos, enfermeiros e técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica aumentou (total de 4714), mas ainda assim o saldo global é negativo em 1286 profissionais de saúde. O regresso às 35 horas de trabalho semanais na saúde, que faz agora um ano, agravou as dificuldades. Quem está no terreno diz que o horário é só no papel. Porque como não´há braços que cheguem, é preciso trabalhar ainda mais.
Os dados, enviados ao JN pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), evidenciam o que a ministra da Saúde já tinha admitido, embora sem avançar números: "Temos necessidade de reforçar dois grupos profissionais muito concretos, os assistentes técnicos e os assistentes operacionais", disse Marta Temido, na última Comissão de Saúde.
A contratação de mais pessoal é, aliás, uma das reivindicações dos trabalhadores da saúde que hoje estão em greve em todo o país, a par da exigência de criação da carreira de técnico auxiliar de saúde. "São estes operacionais que lidam mais tempo com os doentes nos hospitais e a falta de pessoal é enorme", realçou Orlando Gonçalves. O dirigente da Federação Nacional da Função Pública, que convocou o protesto, lembra que as carências já existiam antes da transição para as 35 horas e que, na prática, com tanta falta de pessoal, "as pessoas estão a trabalhar 40, 50 e 60 horas por semana".
Peso passa para outros
O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APHP) garante que "os hospitais têm hoje muito menos recursos humanos do que em 2010". E salienta que a falta gritante de assistentes operacionais sobrecarrega os enfermeiros, assim como a escassez de assistentes técnicos obriga enfermeiros e médicos a perderem mais tempo com trabalho administrativo.
Quanto às contas, Alexandre Lourenço nota que, mais do que olhar para o número de cabeças, é preciso ver o número de horas disponíveis, porque há muitos profissionais, nomeadamente médicos, que têm horários de 20 e 30 horas por semana. Ou seja, um aumento do número de profissionais não significa necessariamente mais horas de trabalho.
O mesmo se aplica às 35 horas. Segundo contas de Alexandre Lourenço, para colmatar as perdas da última década e a redução da carga horária semanal, teria sido necessário contratar em 2018 mais 12 mil profissionais de saúde para manter uma força de trabalho equiparável a 2010.
Porém, os números ficaram muito aquém. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2018 e 2019, foram contratados 2850 profissionais de saúde para assegurar a transição para o regime das 35 horas, dos quais 1058 assistentes operacionais e 1551 enfermeiros.
"35 horas só no papel"
Um número que não bate certo com as contas da bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Ana Rita Cavaco garantiu, em declarações à Lusa, que dos 1700 enfermeiros necessários para colmatar o regresso às 35 horas, foram contratados 600 "e nem mais um".
A bastonária lembrou que o SNS "já tinha uma carência crónica de 30 mil enfermeiros" e para colmatar a passagem das 40 para as 35 horas de trabalho eram necessários 1700. "Nem metade foram admitidos", assegurou.
Ana Rita Cavaco diz que os enfermeiros não trabalham 35 horas, tal como antes não trabalhavam 40. "Trabalham muitas mais horas por semana, 60 ou 70", realça considerando que "as 35 horas são só no papel, pois não há enfermeiros suficientes para cumprir horários de 35 horas, como antes já não havia para horários de 40. As 35 horas são um mero panfleto político para quem quiser continuar a ser enganado", referiu Ana Rita Cavaco.
Para a bastonária dos farmacêuticos, as 35 horas também só existem no papel. Ana Rita Cavaco diz que os profissionais trabalham muito além disso: têm "milhares de horas" acumuladas em bolsas de horas e os serviços farmacêuticos dos hospitais "pouco ou nada" sentiram em termos de reforço de pessoal. "Estamos mais ou menos na mesma. Aconteceu quase nada", afirmou à Lusa.
O presidente do Sindicato dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica, Luís Dupont, nota que as contratações para as 35 horas "ficaram muito aquém das necessidades". Mas a carência não resulta só da alteração do regime de trabalho, porque antes disso já estavam em falta 1500 a 2000 técnicos, referiu à Lusa.
SABER MAIS
Profissões abrangidas
A passagem às 35 horas na saúde abrangeu enfermeiros, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, farmacêuticos e assistentes técnicos e operacionais. Os médicos têm um regime diferente.
2,5 milhões de horas extra
Em 2017, as horas suplementares realizadas por enfermeiros - 2,5 milhões - correspondem a 1441 enfermeiros a tempo completo, contabiliza Alexandre Lourenço, notando que as horas extra saem muito mais caras que as contratações. As horas extra dos enfermeiros em 2018 ainda não são conhecidas, mas é expectável que sejam muito superiores.
Suprir carências
Ao JN, o Ministério da Saúde afirmou continuar a trabalhar para suprir as carências de recursos que subsistem após a reposição das 35 horas.
PONTOS DE VISTA
Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros
As 35 horas são só no papel, pois não há enfermeiros suficientes para cumprir horários de 35 horas, como antes já não havia para horários de 40
Luís Dupont, Pres. Sind. Téc. Superiores Diagnóstico e Terapêutica
Na melhor das hipóteses, terão sido contratados cerca de metade dos que seriam necessários [para a passagem às 35 horas]