Processo "é punitivo" e há quem seja discriminado mesmo depois de sair dele. Porto foi o distrito com mais casos, mas foi em Lisboa que mais aumentaram.
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Os tribunais de primeira instância de Portugal decretaram, em média, 19 insolvências pessoais por dia, no ano passado. Começar do zero pode ser tentador e, para muitas famílias, é a única solução para sair da situação de endividamento excessivo, mas o processo acarreta graves consequências para a vida de quem fica insolvente. É no Porto que há mais insolvências pessoais, mas foi em Lisboa que mais aumentaram.
Das 8629 insolvências decretadas pelos tribunais portugueses no ano passado, 7000 foram insolvências pessoais, demonstram os dados do Ministério da Justiça, consultados pelo JN. Em média, por dia, houve 24 insolvências, 19 pessoais e cinco de empresas.
Uma pessoa em situação de insolvência é obrigada pelo tribunal a vender todos os bens que tem registados em seu nome, como casa e carro, para pagar as dívidas. Neste caso, durante três anos, tudo o que ganhar acima do salário mínimo, ou de outro valor que o juiz defina, tem de entregar ao tribunal. Se mesmo assim não chegar, pode pedir a exoneração do passivo restante. Ao fim dos três anos, pode recomeçar a vida sem dívidas, mesmo que não as tenha pagado. A exceção são as dívidas ao Fisco, Segurança Social, multas e pensões de alimentos devidas.
Das 7000 pessoas que iniciaram este caminho no ano passado, mais de metade são do Porto (1900) e de Lisboa (1756). Em comparação com 2021, houve mais 856 insolvências pessoais - sendo Lisboa o distrito que mais cresceu -, e menos 337 insolvências de empresas. Assim, embora o cenário possa mudar em 2023, as insolvências pessoais foram as únicas a aumentar em 2022.
"Quando não estão presos a nada e sabem que podem resolver a vida em três anos, claro que qualquer um pondera. É muito pouco tempo para quem deve muito dinheiro", explica Zita Medeiros, advogada da Cerejeira Namora, Marinho Falcão. Esta especialista em processos de insolvência constata que o agravamento das dificuldades deveu-se a perdas de rendimentos durante a pandemia, seguidas da inflação e das subidas das taxas de juro.
Então porque é que o número de insolvências singulares subiu e o de empresas desceu? "Os singulares não tiveram o apoio de mecanismos legais para recuperar como tiveram as empresas. Ficaram com uma mão à frente e outra atrás", adianta Zita Medeiros.
"O processo é vexatório"
Nesta razão é secundada pela consultora financeira Andreia Teixeira: "A tempestade das famílias criou-se antes, assim que acabaram as carências, que foi ao mesmo tempo que as quarentenas. Portanto, os singulares começaram a retomar créditos ainda antes das taxas de juro dispararem".
Andreia Teixeira avisa que o processo de insolvência implica que a pessoa "perca tudo no momento inicial". Além disso, alerta, é um processo "punitivo" e "bastante vexatório", pois o nome da pessoa vai para a lista pública de execução.
Natália Nunes, coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira da Deco, revela que há discriminação sobre quem está insolvente e que, mesmo após os três anos, há dificuldade em contratar serviços bancários ou de telecomunicações.
Ao fim de três anos, as dívidas desaparecem
O período de insolvência pessoal foi reduzido de cinco para três anos em abril do ano passado. Este é o período durante o qual a pessoa ou empresa insolvente está obrigada a entregar ao tribunal os rendimentos em excesso. Só quando termina este prazo é que as dívidas que não foram pagas podem ficar extintas. A redução do prazo foi um compromisso assumido no âmbito do PRR e transpõe uma diretiva da Comissão Europeia.
Projeção para 2023
Empresas desistem mais do que na pandemia
O número de insolvências de empresas decretadas pelos tribunais de primeira instância em Portugal está a diminuir há dez anos seguidos e 2022 registou nova quebra. Mas a tendência pode estar prestes a mudar e, segundo as especialistas consultadas pelo JN, 2023 será um ano com mais falências. Os despedimentos coletivos nos primeiros dois meses do ano já superam os do ano passado.
"As empresas que tenho acompanhado pensam muito mais em desistir do que durante a pandemia." A frase da consultora financeira Andreia Teixeira reflete um cenário que se verifica desde o início deste ano. As causas são o aumento do custo do financiamento devido às taxas de juro, a previsível redução da procura por bens e serviços e o fim da "anestesia" gerada pelas ajudas da pandemia.
"Estas linhas [de crédito] com carência duraram até agora e é agora que as empresas estão a começar a apresentar-se à insolvência. Deixe os números revelarem-se, porque noto com grande premência" esta tendência, assegura a consultora financeira.
Despedimentos coletivos
Os primeiros indicadores deste ano sobre a situação das empresas não são animadores. Segundo a Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho, houve 42 despedimentos coletivos em janeiro, mais 15 do que os 27 registados no mesmo mês do ano passado. Em fevereiro também aumentaram os despedimentos coletivos: foram 29, mais seis do que os 23 de fevereiro do ano passado.
Sendo a insolvência uma medida de "fim de linha", é nos despedimentos e nos Processos Especiais de Revitalização (PER) que os especialistas se baseiam para prever o que aí vem ao nível de insolvências. E nenhum dos indicadores é promissor. "Temos vários PER que entraram em 2023", atesta Zita Medeiros, advogada especialista nestes casos.
Se, até agora, não houve um aumento das insolvências de entidades coletivas "é porque as empresas conseguiram encontrar resposta para se recuperarem e algumas obrigações foram estendidas no tempo até agora, em 2023", acrescenta.
A seguradora de crédito francesa Allianz Trade divulgou recentemente as projeções para 2023 e perspetiva um aumento das insolvências coletivas de 19% para Portugal e de 23% para a Zona Euro. A Iberinform, de seguros de crédito, também revelou recentemente que o número de insolvências de empresas subiu 10% em março deste ano. No acumulado dos três meses, o número ainda é menor do que em 2022, mas a tendência começa a inverter-se.