Depois de anos particularmente críticos, com dois acidentes brutais em que ficou provada a responsabilidade da companhia, uma porta que se soltou em pleno voo e ex-trabalhadores a apontar falhas e pressões, a empresa americana volta à berlinda. Queda de avião na Índia causou 279 mortes.
Corpo do artigo
9 de junho de 2025. O “Financial Times” publica a peça: “How Kelly Ortberg is piloting Boeing from crisis to cash”. O título traduz-se assim: “Como Kelly Ortberg está a conduzir a Boeing da crise para o dinheiro”. Em causa, o atual CEO de uma das maiores fabricantes mundial de aeronaves. No trabalho do jornal britânico, apontavam-se os progressos conseguidos pela companhia americana ao longo dos últimos meses e o longo caminho a percorrer, para ultrapassar de vez a turbulência dos últimos anos. No texto, Ron Epstein, analista do Bank of America, dizia mesmo que, com a chegada de Ortberg à Boeing (consumada em agosto de 2024), a narrativa tinha mudado. “Sob a liderança dele, estamos mais confiantes de que a empresa pode quebrar a espiral de decadência”, antevia. No entanto, Epstein também deixava um aviso, que nem de propósito fechava o texto: “Depois de anos de passos em falso, basta uma falha para que a pedra volte a rolar colina abaixo”. Duas semanas depois, é difícil não ver qualquer coisa de premonitório nesta frase. A 12 de junho, apenas três dias após a publicação do trabalho, um Boeing 787 despenhou-se na Índia, meio minuto após a descolagem. Ao todo, 279 pessoas morreram. Milagrosamente, um cidadão indo-britânico de 40 anos sobreviveu.
Quanto à Boeing, sobreviverá também. Ou pelo menos, assim se espera. Mas é inegável que o mais recente desastre vem acrescentar uma nova dose de dificuldades a um caminho já particularmente tortuoso. “A Boeing tem neste momento um problema inegável de imagem”, reconhece José Correia Guedes, ex-comandante da TAP. Por muito que ressalve que não há qualquer razão para desconfiar do 787 Dreamliner, o modelo da aeronave que caiu na Índia. Lá iremos. Foquemo-nos, por agora, na origem do “problema de imagem”. Ou da “espiral de decadência” de que falava Ron Epstein. Para se perceber, há que embarcar numa viagem que começa algures em 2017, num tempo em que no mundo da aviação ainda resistia, meio a sério meio a brincar, a velha máxima “If it ain’t Boeing, I ain’t going” (traduzindo: se não for Boeing, não vou). Nesse ano de 2017, em particular, a gigante americana vivia um dos melhores momentos financeiros e operacionais da sua história, com um lucro líquido superior a mais de sete mil milhões de euros. Foi também nesse ano que o modelo 737 Max, uma das muitas evoluções do 737 (originalmente criado em 1967, com um sem-fim de “upgrades” pelo meio), fez o seu primeiro voo comercial.
Já aos problemas começaram em outubro de 2018, quando um avião da Lion Air, uma companhia indonésia low-cost, se despenhou 13 minutos após a descolagem, no mar de Java (sul do oceano Pacífico), e causou a morte de todas as 189 pessoas que seguiam a bordo. Tratava-se de um Boeing 737 Max, a tal evolução do modelo clássico. Meses depois, nova tragédia, agora em África, com um avião da Ethiopian Airlines, que caiu seis minutos após a descolagem, na cidade etíope de Bishoftu. Desta vez, 157 pessoas morreram. Novamente, um 737 Max. Para adensar a trama, o acidente foi em tudo semelhante ao anterior. A desconfiança que se gerou foi de tal ordem que, dias depois, foi decretada uma suspensão global dos voos com este modelo. O “grounding” durou cerca de 20 meses, tendo sido um dos mais longos da história da aviação comercial. As investigações – que começaram logo após o primeiro acidente fatal – acabaram por demonstrar que os problemas estavam relacionados com o MCAS (Maneuvering Characteristics Augmentation System), um novo sistema de controlo concebido para o 737 Max, com o intuito de ajudar os pilotos a manter o ângulo correto da aeronave.
Da cultura de ocultação à porta solta
Gustavo Dias, diretor da licenciatura e do mestrado em Engenharia Aeroespacial da Universidade do Minho, contextualiza. “A Boeing definiu uma estratégia de não desenhar um novo avião para substituir o 737, mas de ir fazendo sucessivos upgrades à plataforma, o último dos quais foi o 737 Max. Na altura, houve um upgrade de vários sistemas, designadamente com a introdução de motores ultraeficientes. A questão é que estes motores eram maiores do que os anteriores e não cabiam debaixo da asa, o que alterou a aeronave e o próprio comportamento do avião de forma significativa.” É aqui que entra o MCAS, “desenhado para controlar certas tendências deste avião [acentuadas pelas alterações estruturais], em particular a de o nariz subir de forma abrupta”. “O problema é que houve uma série de erros na introdução do sistema, desde logo o facto de a sua existência não ter sido comunicada aos pilotos e de estes nunca terem sido treinados.” Os resultados das várias investigações foram arrasadores. No relatório final do acidente de 2018, apontava-se o MCAS como principal causa do acidente, referindo-se ainda falhas de manutenção e formação inadequada. Na investigação ao acidente de 2019, cujo veredicto foi conhecido apenas em 2023, concluía-se que o sistema atuou sem necessidade e levou diretamente à queda do avião, tendo sido apontados à Boeing vários erros de design. Antes disso, em 2020, o relatório elaborado pelo Congresso Americano já tinha acusado a empresa de fomentar uma “cultura de ocultação” e negligência, com a benevolência da FAA (Federal Aviation Administration), criticada pela falta de independência e fragilidade técnica no processo de certificação.
Nas investigações, foram também consideradas as denúncias de Ed Pierson, antigo gestor sénior de uma das linhas de produção do 737 Max, e de John Barnett, em tempos engenheiro de qualidade na Boeing (entretanto falecido): Pierson alertou para condições críticas na fábrica, com horas extras excessivas, peças fora de sequência e riscos elevados de erro humano; Barnett denunciou, entre outras coisas, a existência de aparas de metal perto de sistemas elétricos, com risco de falha catastrófica, e de pressões para acelerar a produção, ignorando os defeitos. Ambos tinham já alertado para a cultura vigente na empresa, mas só após os acidentes as denúncias ganharam real relevância. Às investigações, seguiram-se longos meses de alterações promovidas pela Boeing, desde logo ao nível do próprio sistema, que passou a usar dois sensores de ângulo de ataque em vez de um e a permitir que os pilotos contrariassem facilmente o MCAS com os controlos manuais. Mas não só. Os pilotos passaram a ter treino obrigatório em simulador para uma melhor adaptação ao novo sistema, a segurança foi reforçada, as equipas de engenharia e qualidade reestruturadas. Em novembro de 2020, o “grounding” era por fim levantado.
O tempo, porém, não era de festejos. Em 2020, o Mundo estava já congelado pela pandemia de covid-19, particularmente dramática no caso das companhias aéreas. E assim se desenhava a tempestade perfeita da Boeing. Se em 2019 a companhia teve, pela primeira vez em 20 anos, prejuízo (com uma queda aparatosa de 53% nas entregas de aeronaves), em 2020, a catástrofe exponenciou-se, com um prejuízo histórico de mais de dez mil milhões de euros. Seguiram-se anos de recuperação lenta, com uma melhoria gradual ao nível das entregas e das receitas, mas ainda longe dos números pré-crise. Até que, no início de 2024, a Boeing volta a dar que falar, pelos piores motivos. Desta vez, num voo da Alaska Airlines e sem fatalidades a registar, mas com contornos rocambolescos. Após a descolagem em Portland, um avião 737 Max que rumava à Califórnia ficou sem uma porta. O buraco provocou uma despressurização da cabine, mas não houve incidentes de maior a registar. Um mês depois, o National Transportation Safety Board (NTSB) concluiu que havia quatro parafusos em falta na porta esvoaçante.
E a credibilidade da Boeing outra vez a vacilar, com encomendas a serem canceladas, atrasos na entrega de aviões novos e perdas financeiras substanciais. Já para não falar nos despedimentos (estima-se que, nos últimos anos, tenham saído perto de 50 mil trabalhadores), nas greves (no ano passado, a greve dos maquinistas envolveu 33 mil trabalhadores e durou quase dois meses), nos processos judiciais – recentemente, a empresa aceitou pagar cerca de 960 milhões de euros para evitar um procedimento criminal relacionado com os acidentes mortais de 2018 e 2019. Um cocktail desastroso, que levou a gigante americana a perder ainda mais terreno para a Airbus (em 2024, a empresa europeia entregou mais do dobro das aeronaves entregues pela Boeing) e a fechar o último ano com perdas médias de 870 milhões de euros por mês. Já o ano de 2025 prometia ser diferente, com Kelly Ortberg a impulsionar um aparente voo de recuperação. Da crise para o dinheiro, como dizia o “Financial Times”. Só que, entretanto, veio mais este acidente. E com ele outro previsível abanão na parca estabilidade da companhia.
Mas há razões para desconfiar deste 787 Dreamliner? Ao que tudo indica não. José Correia Guedes insiste na questão da imagem. “A Boeing teve esse erro de conceção grave [relacionado com o MCAS], que esteve diretamente associado a dois grandes acidentes, mas que foi corrigido. A questão é que ficou sempre com um problema de imagem sério e agora sempre que há um acidente aponta-se logo o dedo. Trata-se de um avião construído recentemente, muito avançado, com materiais compósitos, mais resistentes e leves, com sistemas de instrumentação e computação do melhor que há, que já fez 4,2 milhões de voos e que nunca tinha tido um acidente fatal. Se é mais um problema da Boeing? Até ao momento não encontro a mínima razão para suspeitar de uma falha com o avião.” O ex-comandante da TAP deixa ainda uma observação, para mitigar eventuais receios acrescidos. “O que podemos constatar é que apesar do aumento exponencial de aviões que andam a voar, há cada vez menos acidentes. Em todo o ano de 2023, por exemplo, não morreu uma pessoa em toda a aviação comercial a jato. E houve centenas de milhões de pessoas a voar. O avião continua a ser de longe o meio de transporte mais seguro do Mundo. Morre-se muito mais a descer escadas.”