Entrar num relacionamento não por amor ou paixão, mas por receio de ficar sozinho na velhice, sem ter alguém que cuide de nós, pode gerar estranheza, sobretudo numa sociedade que sobrevaloriza o amor romântico e a química, promovida por filmes, séries ou livros. Porém, apontam os especialistas, é um motivo tão válido como outro qualquer (com algumas ressalvas).
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Aos 55 anos, John, nome fictício, chegou a um ponto da vida que nunca imaginou, o de querer um relacionamento por medo do futuro. Ao cabo de uns anos solteiro, há muito que tinha deixado de procurar uma relação. "Tentei, mas nenhuma das poucas mulheres com quem namorei despertou em mim algo próximo do amor. Então, disse a mim mesmo que não valia a pena, as discussões, o ciúme, a necessidade constante de defender a minha necessidade de solidão - especialmente para alguém como eu, profundamente introvertido por natureza." Porém, atravessar o momento da doença do pai foi um ponto de viragem. "Estou a pensar começar uma relação, não por amor ou paixão, mas por medo - medo do futuro. Testemunhar a doença de perto, ver o cuidado que o meu pai recebia da esposa e de nós, filhos, o conforto de não estar sozinho numa cama de hospital, abalou-me mais do que estava à espera." O testemunho, partilhado numa coluna dedicada às relações amorosas do jornal inglês "The Guardian", faz levantar a questão: será saudável começar uma relação só pelo receio de ficar sozinho?
Luana Cunha Ferreira, terapeuta familiar e de casal, cuja investigação se debruça sobre relações amorosas, responde num ápice. "Pode ser completamente saudável as pessoas entrarem numa relação e comprometem-se a ficar porque não querem envelhecer sozinhas. A questão está no consentimento. Se alguém tem para a relação esse objetivo específico, é bom que seja honesto com a pessoa parceira sobre isso. Caso contrário, é um engodo", refere. Na verdade, alerta, nas relações monogâmicas, é comum entrarmos num relacionamento sem estarmos completamente cientes das verdadeiras razões do outro. "Estamos numa cultura que hipervaloriza o amor romântico e que faz pouco para o questionar, portanto, quando não se clarifica, o natural é o outro pensar que estamos apaixonados e que, por isso, vamos fazer o que as pessoas apaixonadas fazem, casar, fazer vida em conjunto." Clarificar é, por isso, o ponto crucial. Até porque, importa sublinhar, os motivos para estarmos numa relação são muito diversos. "E está tudo bem com isso. A questão é que as duas pessoas têm de estar conscientes do que se está a passar."
Ainda assim, o tema levanta algumas dúvidas a Filipa Costa Macedo, também terapeuta familiar, que reconhece que "querer envelhecer junto a alguém e não querer a solidão é normal". "É um motivo válido e que, na realidade, está sempre presente quando se assume um compromisso maior numa relação, como casar, viver junto. No entanto, procurar uma relação amorosa que tenha isso como único fim pode ser muito redutor e frágil." Sendo certo que, aqui, a idade pesa. Na adolescência, o medo do futuro não está habitualmente presente, mas numa idade adulta avançada "terá bastante peso". "Muitas vezes, passa-se por doenças, situações difíceis, vemos um casal cuidar um do outro e isso mostra-nos eventualmente o que poderá ser o nosso futuro." O problema, enaltece, é que o medo nunca é bom ponto de partida para uma relação. "A relação já é um objetivo em si, fazer com que funcione é o objetivo, e isso depois traz as suas consequências. Uma delas é saber que tenho alguém que vai cuidar de mim se precisar. Agora, decidir que vou viver com esta pessoa só para que no futuro ela me apoie, e não dar margem à relação para crescer, não sei se é o mais saudável. A menos que seja um contrato muito específico entre duas pessoas." E voltamos à questão do consentimento.
"Procurar uma relação para não estar só é uma motivação legítima, humana e compreensível, que não deve ser vista como menos válida"
Joana Arantes
Professora e investigadora na Universidade do Minho
Mas esta reflexão obriga-nos a ir mais a fundo. Tal como Luana Cunha Ferreira lembrava, vivemos numa sociedade que sobrevaloriza o amor romântico, amplamente promovido por filmes, séries, músicas ou livros. "A paixão intensa e o desejo sexual são frequentemente apresentados como condições essenciais para uma relação verdadeira ou bem-sucedida. Muitas pessoas até saltam de relação em relação em busca daquele sentimento de coração a palpitar, associando-o ao verdadeiro amor", corrobora Joana Arantes, professora na Escola de Psicologia da Universidade do Minho e coordenadora do Grupo de Investigação em Psicologia Evolutiva, que se dedica aos relacionamentos amorosos. Só que essa ideia, diz, nem sempre corresponde à realidade.
Ora, de acordo com a teoria triangular do amor, proposta por Robert Sternberg, em 1986, o amor tem três componentes principais: paixão (a excitação física e emocional), intimidade (proximidade, ligação emocional) e compromisso (decisão de manter uma relação a longo prazo). "Diferentes combinações destes elementos geram diferentes tipos de relações amorosas. Uma relação pode ser baseada em intimidade e compromisso, mesmo com baixa paixão. Trata-se de uma forma de amor companheiro, comum em relações de longa data, e muito valorizado por casais que procuram estabilidade e partilha", explica Joana Arantes.
A paixão e os homens
Aliás, segundo a sua investigação, a paixão cumpre um papel inicial de união e seleção, mas não necessariamente de manutenção da relação a longo prazo. "Os estudos que realizámos mostram que a paixão tende a diminuir com o tempo, enquanto a intimidade e o compromisso podem crescer e estabilizar. Esta evolução natural pode fazer com que relações mais calmas e menos intensas do ponto de vista da paixão continuem a ser fontes significativas de bem-estar." Aqui, há um detalhe importante: nem todas as pessoas atribuem o mesmo valor à componente sexual ou à intensidade da paixão numa relação, há quem valorize mais o laço emocional, o apoio mútuo e a sintonia de valores e objetivos de vida.
Dito isto, aponta, "procurar uma relação para não estar só é uma motivação legítima, humana e compreensível, que não deve ser vista como menos válida". "Os nossos estudos mostraram que o medo da solidão está associado a uma maior propensão para iniciar relações, mesmo quando os parceiros não são ideais. Em alguns casos, isso pode conduzir a decisões apressadas ou à permanência em relações pouco satisfatórias. Ainda assim, pode também representar uma forma legítima de satisfação de necessidades emocionais. A chave está na consciência com que essa escolha é feita: se a pessoa reconhece os seus motivos e sente que a relação é positiva e enriquecedora, não há razão para invalidá-la."
No meio de tudo, parece haver uma tendência: são os homens que mais procuram relações por medo do futuro. E as razões para isso, segundo a terapeuta Luana Cunha Ferreira, são simples. "As mulheres, sendo socializadas desde cedo para cuidar, sobreinvestem nas relações. Compram as prendas, lembram-se dos aniversários, levam sopa quando o outro está doente. E a tendência é terem uma comunidade à sua volta, com quem se sentem íntimas, acompanhadas e seguras, de amigos, familiares, vizinhos." Já os homens tendem a não investir tanto em "rodear-se de pessoas com quem se sentem seguros e vistos". Por isso, à medida que a idade avança e as relações de adolescência vão emagrecendo, "é mais assustador olhar para a frente e perceber que, se ficarem doentes, não têm quem cuide deles". Isso confirma-se de forma crua nos dados dos recasamentos pós-viuvez, os homens recasam-se muito mais rapidamente. "Não só porque não têm uma rede social tão robusta, como de repente já não lhes são prestados serviços de gestão de vida fundamentais, como cuidar da casa, e não desenvolveram essa autonomia."
A própria literatura científica subscreve isso, como diz Joana Arantes. "Há uma tendência de os homens valorizarem mais o apoio instrumental e prático que uma relação pode oferecer, enquanto as mulheres tendem a atribuir maior importância ao apoio emocional e à qualidade das relações." Como consequência, após o divórcio ou a viuvez, os homens tendem a procurar mais rapidamente uma nova parceira.
"A questão está no consentimento. Se alguém tem para a relação esse objetivo específico, é bom que seja honesto com a pessoa parceira sobre isso"
Luana Cunha Ferreira
Terapeuta familiar e de casal
Mas voltemos ao princípio. Afinal, o fogo inicial da paixão, a chama do início de uma relação, não é determinante? "É uma característica inicial das relações que tende a unir muito as duas pessoas e, por isso, é importante", enaltece Filipa Costa Macedo. Regra geral, é por isso que nos juntamos, pela química inicial, pelo desejo sexual, pela atração, que fazem com que a intimidade cresça muito rápido. E depois, de acordo com Luana Cunha Ferreira, "quando a paixão baixa, já há um nível de intimidade emocional que faz com que continue a compensar estar nessa relação". Mas isso não quer dizer, ressalva Filipa Costa Macedo, que duas pessoas, quando se conhecem, para que possam ter uma relação romântica no futuro, tenham de ter logo uma atração física grande. Tanto que muitas relações amorosas saudáveis começam com uma amizade que se transforma, com o tempo, em amor romântico.
A pergunta de Joana Arantes é pertinente. "Quem é que não deseja, pelo menos uma vez na vida, sentir a paixão arrebatadora que vemos nos filmes? Esse desejo é compreensível e humano, mas não deve invalidar outros caminhos igualmente válidos para a construção de uma relação. Os estudos mostram que a intimidade emocional pode ser cultivada através de experiências de partilha pessoal, e relações que se desenvolvem gradualmente podem também resultar em estabilidade e satisfação conjugal a longo prazo."