É uma decisão, um modo de vida, que rejeita o modelo familiar tradicional, que rompe com as regras da normatividade afetiva. Não é sinónimo de isolamento ou de solidão. Gera críticas e comentários. E olhares desiguais se for um homem ou se for uma mulher.
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Ela não quer um companheiro na mesma casa, não sonha casar-se, constituir família, ter filhos. Ele não quer uma relação romântica, um amor para toda a vida. A agamia, termo grego que junta o "a" que significa "não" a "gamos" de casamento (sem casamento, portanto), é um modelo que rejeita a formação de casais ou casamentos, é uma escolha de vida que rompe com o formato tradicional das relações amorosas, sexuais e conjugais.
Sara Ferreira, psicóloga clínica, enquadra este modo de estar. "A agamia é uma rutura com os roteiros que a sociedade nos impõe: o casamento como apogeu da vida adulta, a maternidade como vocação natural, o par romântico como certificado de existência plena." É uma recusa de todo esse determinismo cultural. "E nisso há potência, há coragem, há lucidez", acrescenta.
Nem relacionamentos, nem filhos, na maioria dos casos. "A agamia propõe a desconstrução da ideologia amorosa e dos vínculos estruturados, como forma de libertação das normas sociais que regem os afetos, o desejo e a convivência entre as pessoas", refere Rute Agulhas, psicóloga clínica, terapeuta familiar e de casal.
Tânia Gaspar, psicóloga clínica, mestre em Saúde Pública, analisa a postura, a decisão de vida, como uma rejeição estrutural das convenções amorosas, que questiona a lógica que coloca o casal romântico-sexual no centro da organização social, no centro da existência humana. "Muitos agâmicos veem nas relações românticas uma reprodução de desigualdades de género, dependência emocional e até um instrumento de controlo social. Neste sentido, viver fora do sistema amoroso tradicional pode ser entendido como um ato político", comenta. "Mais do que uma simples escolha individual, a agamia representa uma crítica profunda ao modelo tradicional de família, à centralidade do amor romântico e às normas sociais que definem o "sucesso" na vida adulta como encontrar um parceiro e constituir família", resume.
Foco noutras formas de amar
A agamia reconfigura prioridades, desafia a pirâmide que coloca o casal no topo e as amizades mais abaixo, retira o amor romântico do seu trono absoluto. O que "é perigoso para a lógica social, porque abala a engrenagem de consumo e de obediência", constata Sara Ferreira. "É um gesto profundamente político porque retira o amor romântico do altar em que foi colocado pelo capitalismo afetivo", concretiza. O foco vai então para outros modos de amar: amizades sólidas e profundas, projetos coletivos, vínculos comunitários. Há, no entanto, algumas tensões neste ponto. "Ao tentar nivelar todos os vínculos, arrisca-se a esvaziar a singularidade da intimidade amorosa, esse espaço onde nos expomos na nossa versão mais frágil e mais crua", realça, a propósito, a psicóloga. É uma escolha com implicações associadas, como é evidente - como todas o são.
Reduzir a agamia a uma declaração de independência é, para Sara Ferreira, simplificar demasiado. "Sim, é um gesto de soberania sobre o próprio corpo e destino - mas a independência absoluta é também uma idealização, uma ficção", lembra. Homens e mulheres são seres de interdependência, inscritos no desejo e no olhar do outro. "A agamia pode ser emancipada ao recusar a dependência romântica compulsória, mas se entendida como uma retirada completa das relações, corre o risco de confundir liberdade com isolamento." É uma fronteira delicada, sustenta a psicóloga. "A autonomia que emancipa pode, quando levada ao extremo, resvalar para a solidão que empobrece."
Agamia não significa automaticamente solidão ou ausência de afeto. "Muitos agâmicos constroem redes sólidas de afeto com amigos, comunidades e relações não convencionais. O que propõem é um mundo onde nenhuma forma de vínculo seja imposta ou hierarquizada, e onde a autonomia individual não seja incompatível com a conexão humana", sublinha Tânia Gaspar.
A psicóloga explica ainda que agamia não implica necessariamente não querer ter filhos, mas é uma decisão que acontece com muita frequência. "Muitas pessoas agâmicas escolhem não ter filhos por motivos éticos, ecológicos ou pessoais. Outras podem desejar formas alternativas de parentalidade - parentalidade coletiva, adoção, coparentalidade sem romance."
Será uma vontade solitária de não precisar de alguém para alcançar a tão desejada sensação de plenitude, de completude absoluta? A agamia não é necessariamente a exaltação da solidão, mas a recusa do mito da "metade da laranja" que é preciso desconstruir, considera Sara Ferreira. "Não precisamos de muletas emocionais para existir. Ninguém nasce coxa de alma à espera de muleta emocional. Completa-se na relação com o outro, sim, mas também fora dela."
Cansaço estrutural do amor romântico?
O que suporta este modo de vida? O que explica a agamia? O passado tem relevância, o que se viveu em experiências dolorosas, relações abusivas, frustrações repetidas, saturação de papéis de género, adianta Sara Ferreira.
As causas podem vir de vários lados, destaca Tânia Gaspar, de experiências traumáticas - como relacionamentos abusivos, divórcio dos pais -, desejo de autonomia plena, prioridade a projetos pessoais que não se alinham com relacionamentos amorosos. "Também pode estar associada a fatores interpessoais, assim como desilusão com a dinâmica de poder nos relacionamentos amorosos, evitar dependência emocional ou conflitos conjugais, priorizar amizades profundas ou redes de apoio não-românticas e viver de forma mais livre e menos comprometida com as exigências alheias."
Rute Agulhas acrescenta outras causas possíveis como a "crítica ao amor romântico, visto como um sistema ideológico que perpetua a estrutura do casal e reforça padrões patriarcais". A rejeição ao género, como forma de romper com hierarquias sociais e sexuais, e a autonomia radical, que valoriza a liberdade e a razão como autoridades máximas nas decisões afetivas, são outros motivos. "A rejeição sistemática de vínculos afetivos pode também ser entendida como um mecanismo defensivo face a situações negativas ou mesmo traumáticas vivenciadas, pelo que poderá, em alguns casos, surgir como uma escolha não totalmente consciente", repara a psicóloga e terapeuta.
Há fatores sociais e também económicos. Tânia Gaspar fala da cultura individualista que cresce nas sociedades urbanas, da desconfiança nas instituições tradicionais - Igreja, casamento, Estado -, de avanços feministas e maior independência das mulheres, de desestruturação dos modelos familiares convencionais. E ainda o custo de vida elevado, que torna difícil sustentar uma família, a precariedade laboral, jovens com contratos instáveis e vencimentos baixos evitam compromissos duradouros, desigualdade de género persistente, que sobrecarrega mulheres em relacionamentos e maternidade. "Viver sozinho pode sair mais caro, mas permite maior controlo financeiro e escolhas conscientes."
Para Sara Ferreira, reduzir a agamia a traumas seria injusto. "Ela é também sintoma de um tempo: vivemos um cansaço estrutural do amor romântico, um burnout afetivo. No fundo, um desgaste da promessa de felicidade embalada em formato de casal." A psicologia lê essa escolha: um modo de defesa para evitar o risco de novas feridas, a procura por um outro modo de estar. "O perigo é quando a defesa se cristaliza e a recusa de sofrer se transforma em recusa de viver. Afinal, é na fricção com o "outro" que a ferida dói - e é também nela que, muitas vezes, a cura se inventa", diz a psicóloga.
É um modelo que provoca críticas, a sociedade tradicional torce o nariz a quem não tem vontade de casar e ter filhos. Desconfia, não compreende, cataloga pessoas de solitárias, egoístas, incompletas, e tece considerações de vínculos afetivos frágeis, ausência de suporte emocional. Sara Ferreira sabe disso e dos olhares desiguais entre homens e mulheres. "Vivemos numa época profundamente ambígua: de um lado, a sociedade adorna o discurso da liberdade individual; do outro, continua a "torcer o nariz" a quem se desvia do guião. Uma mulher solteira aos 40 ainda carrega o estigma de "incompleta", enquanto um homem na mesma situação é visto como "livre"." Mas há aqui um paradoxo, avisa: "Ao rejeitar as convenções, a agamia ganha potência revolucionária; ao mesmo tempo, desafia a própria matriz de humanização, que se tece no laço e na continuidade entre gerações". Rute Agulhas aborda esse ponto. "As pessoas que se assumem como agâmicas nem sempre são compreendidas pela sociedade e são muitas vezes alvo de preconceitos e estigmatização, o que pode conduzir ao isolamento e mesmo à rejeição."
Há um paradoxo e um dilema, revela Sara Ferreira. "Viver sem vínculos pode proteger da dor, mas arrisca também amputar a experiência do confronto que nos transforma. Há, portanto, um paradoxo fecundo: ao rejeitar a "prisão" dos modelos afetivos normativos, a agamia liberta; mas ao abdicar da intimidade e da alteridade, pode igualmente privar-nos da fricção onde, afinal, a nossa humanidade mais se lapida." E um impasse. "O dilema é este: a liberdade de não precisar de ninguém pode ser conquista, mas também pode ser fuga - fuga da vulnerabilidade que só o vínculo real convoca." É uma escolha. Um modo de vida.