Cidadania Impura
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A performance de Beatriz Albuquerque intitulada "Work for free" permite que qualquer pessoa lhe encomende uma obra de arte sem necessidade de a pagar. Albuquerque é uma das mais bravas performers portuguesas, com um percurso que inclui colaborações com Marina Abramovic, e o seu trabalho está em exposição no Museu da Vila Velha onde alguns atentos a foram encontrar. Eu, quis muito encontrá-la para lhe encomendar a maldade de buscar o rosto do meu sobrinho no Paraíso.
Na secretária administrativa onde se tratava da encomenda da obra, coloquei a cartolina branca e cerquei-a de flores. O espaço entre vasos permitia alguma abertura, mas as flores interferiam com a visão cabal do papel. Coloquei Kathleen Ferrier a cantar "Agnus Dei", de Bach, e a artista tomou com o pé o marcador preto e solenemente viu como estaria o meu sobrinho nessa terra de Deus.
A arte não é exactamente o resultado. É mais o que abre ao infinito. Por isso, o rosto da criança não era o que esperava ver. Na verdade, queria sobretudo que a criança fosse o propósito daquele gesto, a ter existência, pertinência, utilidade, função, amor. Interessa-me que esteja presente.
Beatriz Albuquerque, como todos os artistas, talvez possa auscultar o Paraíso, talvez possa lá caminhar na ponta do pincel, na ponta de um lápis. Ainda assim, não temos muito como acreditar no aspecto da felicidade eterna. Como estarão os que são felizes para sempre, é algo que não podemos descortinar porque não nos é possível conceber uma felicidade para sempre. A humanidade é certamente definida pela consciência da derrocada, pelo agreste de tantos instantes, pela normalidade de todos nos dirigirmos para deixar de o sermos. Deixar de sermos humanos.
Ainda assim, a obra foi executada. Exponho-a na minha casa com a convicção de ter feito o que me competia: dar corpo. Dar sempre corpo à criança ausente. Ter por perto provas de que é companhia. Uma companhia importante, que não quererá jamais ir embora. A arte, sem surpresa, é essa participação sem matéria. Uma inscrição que se basta com o mínimo para criar uma totalidade, até mesmo o absoluto.