O assunto é quase sempre o mesmo: eles, as preocupações deles, os problemas deles. Perante outros tópicos, há quase sempre desinteresse. Ou até um regresso repentino ao registo anterior. E quando temos problemas? Hum, os deles serão sempre maiores.
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A conversa gira constantemente em torno deles, o espaço para partilharmos as nossas experiências ou sentimentos praticamente não existe, se eventualmente tentamos, a resposta do outro lado rapidamente nos demove: ou somos interrompidos, ou o nosso interlocutor leva o assunto de volta para si próprio ou simplesmente demonstra pouco ou nenhum interesse pelo que dizemos, zero empatia, zero curiosidade. Nalguns casos, pode ainda minimizar qualquer episódio ou problema que relatemos. O típico “olha, isso também me aconteceu, mas pior”. Dormiste mal? “Eu ando com insónias há semanas.” Andas com problemas no trabalho? “Eu estou tão mal que já pondero meter baixa.” Tens dores no corpo? “Eu nem sei como me levantei da cama.” Se os exemplos referidos lhe são estranhamente familiares, então tem oficialmente um amigo (ou amiga) que só fala dele próprio, com todos os desafios que isso coloca – e eventualmente, com todo o impacto que uma amizade assim pode ter no seu bem-estar e saúde mental. Mas calma, este não é um caminho sem volta, nem a solução tem de passar obrigatoriamente por uma rutura dolorosa e fatal.
Foquemo-nos, por agora, em possíveis explicações para tal comportamento. O primeiro impulso poderá ser associar este tipo de atitudes a um transtorno de personalidade narcisista. Mas, como ressalva Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, é necessário alguma prudência nessa leitura. “Hoje em dia, cai-se muito no erro de achar que toda a gente é narcísica. Essa é uma confusão que devemos evitar”, alerta. Uma pessoa narcisista é alguém que possui um transtorno de personalidade caracterizado por um padrão persistente de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia. Frequentemente, está associado a um transtorno depressivo. Já nos exemplos referidos no arranque deste texto (que por sinal nos foram relatados por pessoas habituadas a lidar com amigos que só falam deles próprios), Miguel Ricou entende que a questão poderá ser mais uma “dificuldade de autorregulação, seja emocional ou social”. “Começam a falar de si próprias e lá vão elas, sendo que muitas vezes se torna difícil conversar.”
Catarina Lucas, psicóloga e diretora de uma clínica homónima, também é cautelosa. “Nem todas as pessoas que falam muito de si próprias têm um transtorno de personalidade narcisista”, aponta. Reconhece, no entanto, que uma das características desse transtorno “é exatamente a necessidade constante de validação, a falta de empatia e a tendência para monopolizar as interações sociais”. “Ainda assim, em muitos casos, esse comportamento pode estar mais relacionado com insegurança, falta de consciência relacional ou até com uma fase de maior necessidade emocional.”
E se acha que manter relações próximas com pessoas que falam delas insistentemente não tem qualquer impacto no seu bem-estar – eventualmente, na sua saúde mental – talvez valha a pena pensar duas vezes. É algo que “pode gerar frustração, sensação de invisibilidade e desgaste emocional”, alerta Catarina Lucas. “A longo prazo, isso pode afetar a autoestima, aumentar sentimentos de solidão e até contribuir para sintomas de ansiedade ou tristeza, especialmente quando sentimos que as nossas necessidades emocionais não são reconhecidas. Relações desequilibradas drenam energia e criam um ambiente onde é difícil sentir-se valorizado ou compreendido, o que pode ter um impacto direto na nossa saúde mental e no nosso bem-estar.” Miguel Ricou concorda. “É evidente que isso nos diminui e faz com que os vínculos tendam a enfraquecer. O amor tem duas dimensões: uma de carinho, outra de aprovação. Se temos alguém que simplesmente não se preocupa com as nossas coisas, isso acaba por fazer com que nos sintamos desvalorizados. Não convém estarmos sistematicamente expostos a isso, porque é algo que acaba por ter impacto. O que não quer dizer, e também é importante dizer isto, que a outra pessoa seja má. Às vezes, é só um medo muito grande de que ninguém repare nela. Não peço que as pessoas psicologizem as relações, mas pode ajudar perceber que se uma pessoa fala muito de si é porque tem medo de ser ignorada, porque precisa de se mostrar, porque tem falta de confiança.”
Alertar, com carinho
Chegamos, pois, à derradeira questão: o que fazer? Também neste caso se impõe uma dose considerável de prudência, avisa Miguel Ricou. “Temos que saber estabelecer os nossos limites, sobretudo em relação ao que nos incomoda. Não digo que a solução seja abandonar o outro, muitas vezes uma conversa honesta, que ajude a estabelecer limites, pode ser suficiente para o outro fazer um esforço para se moderar. Depois, claro, se chega a um ponto em que não estamos para aturar certas coisas, não estamos e pronto, está tudo bem. Também não podemos deixar que nos suguem, tem sempre de haver uma certa reciprocidade. Acho é que é importante termos consciência de que toda a gente tem qualquer coisa, há sempre dimensões no outro de que não gostamos.”
Catarina Lucas partilha outros conselhos pertinentes. “Pode ser útil interromper com delicadeza e trazer a conversa para um espaço mais equilibrado, dizendo algo como ‘Posso partilhar também o que aconteceu comigo?’ ou ‘Gostava de te contar uma coisa, pode ser?’”, sugere. Já confrontar diretamente a pessoa com o facto de só falar de si tem os seus riscos. “Depende muito da forma como se faz e da abertura da outra pessoa para ouvir. Confrontar diretamente alguém com este comportamento pode deixá-la na defensiva, especialmente se a pessoa não tiver consciência do impacto que tem nas conversas. Uma abordagem mais empática, como ‘às vezes sinto que não há muito espaço para eu partilhar também’ pode ser mais eficaz do que acusar. O ideal é falar a partir da própria experiência e não como julgamento — isso aumenta a probabilidade de a mensagem ser recebida com menos resistência.”
De resto, também a especialista reconhece que “se o padrão se repetir constantemente, é legítimo refletir sobre o lugar que essa relação ocupa na nossa vida e se está a ser nutritiva ou apenas desgastante”. “Nem sempre é possível mudá-las, mas podemos mudar a forma como nos posicionamos”.