
Bombeiro Hugo Rodrigues e o comandante Pedro Ferreira dos Voluntários do concelho da Moita, corporação que mais partos fez em ambulâncias e na estrada em 2025
Foto: Mário Vasa
A pouco mais de meia hora da capital, a corporação de Bombeiros da Moita detém o valor recorde de partos feitos em ambulância e na estrada em 2025. Os Voluntários explicam como é fazer nascer em pouco mais de quatro metros quadrados, enquanto esperam pela luz verde de uma urgência hospitalar aberta. Muitas vezes sem informação da gravidez, sem possibilidade de comunicação por as gestantes não falarem português e com grávidas no limite por desconhecerem para onde vão enquanto resistem às dores das contrações. Tudo isto, num cenário em que não há "epidurais para ninguém".
"Esta noite ia sendo o oitavo parto do meu percurso como bombeiro", desfia Hugo Almeida. O bombeiro voluntário de 35 anos, quatro deles passados na corporação da Moita, é o mais experiente a lidar com gestações limite e nascimentos em ambulância, somando sete, dois dos quais este ano. O terceiro não aconteceu por um triz na madrugada de 9 de dezembro.
"Uma senhora liga para o 112 às 7.15 horas com rutura de bolsa e contrações. Com as urgências de Almada e Setúbal fechadas, fizemos o parto praticamente dentro da ambulância, a caminho do Hospital de Santa Maria, em Lisboa", especifica. Tudo numa distância de pouco mais de 30 quilómetros. "Era um primeiro filho e houve complicações porque a grávida não tinha toda a dilatação e estávamos sem viatura de apoio. Mas não aconteceu, desta vez não aconteceu, e o bebé nasceu pouco depois", revela, lembrando que até hoje a sorte tem ditado que "tudo tenha corrido bem".
No Natal, Hugo Almeida, que até lhe parece ter "um íman" para estes casos e que ambiciona formar-se em enfermagem e tirar a especialidade médico-cirúrgica, vai estar a trabalhar. No dia em que se celebra o nascimento de Jesus, um bebé que nasceu numa manjedoura porque não existiam hospedarias, não será especial face a todos os outros em que as urgências estão fechadas. Afinal, os bombeiros da Moita são, na reta final do ano, a corporação que soma mais partos em trânsito, no caso em ambulância: já são 15. Segundo dados revelados pelo INEM, até outubro de 2025 foram contabilizados 45 partos em viaturas e 20 na via pública, em todo o território nacional.
A bombeira Bruna Sousa soma dois nascimentos: "O primeiro que fiz foi porque a grávida não chegou a tempo ao Hospital de Santa Maria e o segundo ao Garcia de Orta, ambos porque o do Barreiro estava fechado. Num tivemos a VMER, noutro não". Também ela fala na sorte por tudo ter corrido bem.
Bombeiros da Moita Hugo Almeida, que soma sete partos em ambulâncias no seu currículo, e Bruna Sousa
O comandante da corporação, Pedro Ferreira, fala dos 15 partos como um recorde que "preferia não ter". "É verdade que sempre nasceram crianças nas ambulâncias, mas não com esta frequência. Se calhar, uma corporação de bombeiros tinha um ou dois nascimentos por ano - e possivelmente as que estavam no Interior do país, bastante longe dos hospitais -, mas não nas mais próximas. No ano passado, já tivemos bastantes, andávamos ali a bater quase os 10 partos. Mas este ano estamos em 15 e não foram 20 porque houve uma corporação nossa vizinha, a Sul e Sueste, que fez cinco na nossa zona operacional", alerta.
Pedro Ferreira teme o dia em que algo possa correr mal e que a sociedade não compreenda o risco que está aqui em causa. "Não substituímos um bloco de partos, um obstetra", vinca o comandante. "Se um enfermeiro num hospital, que até tem formação, não o pode fazer sem a presença de um médico, um bombeiro pode?"
Dúvidas, kits e a pergunta: "Para onde vou?"
Por trás das fotos de alegria imensa que vão chegando às redes sociais à medida que as crianças vão nascendo em ambulâncias, paradas de emergência na estrada para poder fazer o procedimento em segurança, há momentos de stress para as mães e fases de angústia para quem acode. "A primeira pergunta que me fazem sempre é 'para onde é que eu vou?' Elas [as grávidas] têm a noção do que é a nossa realidade nas urgências obstétricas", diz Hugo Almeida. "Tento sempre acalmá-las, esclareço que estamos a avaliar, que um colega do INEM vai falar com o médico. Informo a grávida e a família e tranquilizo-os", acrescenta. E avisa: "Se sentir isto ou aquilo tem de nos informar para que possamos parar e avaliar". Bruna Sousa ouviu a pergunta em novembro último, num parto em que nem sequer houve foto para a posteridade. "Nem pensámos nisso, só pensámos em fazer nascer aquele bebé saudável."
Se o nascimento está iminente, não há volta a dar. É tempo de remover o kit de partos - dois por ambulância - e iniciar o procedimento. "Este kit tem lá dentro uma embalagem para o bombeiro e tem outra para a mãe. O primeiro tem as batas, as luvas, a tesoura, os clamps para o cordão umbilical, o segundo o penso, a coberta para envolver a criança e um kit para limpar as vias aéreas da criança assim que nasce. Portanto, tudo o que é necessário para fazer um parto normal", detalha o comandante.
Existem dois kits de partos por ambulância
Depois, é esperar que tudo corra pelo melhor. Mas e se não correr? "Nos cordões à volta do pescoço, temos técnicas para resolver essa situação. Mas se há um prolapso do cordão ou de um membro do bebé (que não a cabeça); se estiver de pés, eu tenho de enfiar a mão para o tentar agarrar. Vai doer. Há técnicas para isso e, de qualquer maneira, até agora não nos aconteceu, mas tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia parte. No dia que correr mal, sou eu quem vai dar a cara, não quero que nenhum bombeiro meu seja acusado do que quer que seja."
"Além de ser uma situação nervosa para nós, para elas [grávidas] é bem mais complicado estar neste meio", diz a bombeira. O comandante detalha: "Agora imagine o que é, entra dentro de uma ambulância com dois homens, pode ser um homem e uma mulher, duas mulheres às vezes é difícil. Chama-se a viatura médica, normalmente médico e enfermeiro, mais dois homens, a grávida volta a ser observada dentro de uma ambulância, um espaço reduzido, e todos esses níveis de stress, todo esse constrangimento, vai acabar a passar para a mãe e para a criança também. E depois há mulheres a pedirem, por exemplo, para que as ajudemos a terem menos dores. Mas como é que eu posso fazer isso? São partos normais. Não há cá epidurais para ninguém." "Não tenho nada para lhes dar a não ser a segurança", reafirma o bombeiro Hugo Almeida.
Comandante Pedro Ferreira mostra o material disponível para fazer partos dentro de uma ambulância
Google tradutor já entrou no trabalho de parto
Numa realidade em que cerca de metade dos partos nestas condições são de mães estrangeiras - as restantes são cidadãs nacionais, como explica o comandante Pedro Ferreira - o bombeiro Hugo Almeida já teve de se socorrer de um tradutor online para conseguir fazer nascer em segurança duas das sete crianças que soma no currículo. "Num dos casos, recebemos uma senhora da Guiné-Bissau que não falava português e acabou por entrar em trabalho de parto. Quando demos conta, teve de ser o tradutor do Google a ajudar para conseguirmos fazer o parto dentro da ambulância", recorda.
O voluntário Hugo Rodrigues também já se confrontou com situações limite em que a barreira linguística se impôs, não tendo, contudo, nunca impedido um parto em segurança. "A freguesia do Vale da Amoreira tem muita gente oriunda de África. Aí a nossa maior barreira é mesmo a linguística. Muitas não falam inglês, português então nem pensar. Falam qualquer coisa de francês", assinala o bombeiro. Mas a experiência já lhe dá ferramentas. "Já consigo detetar contrações só pelas expressões da cara da grávida e começar a fazer as contas [para o nascimento]", partilha.

Bruna Sousa ainda não precisou, "mas foi por acaso". "Tenho tido sorte", admite. O pior mesmo é quando não há boletim de grávida ou quando as grávidas faltam às consultas e não há informação disponível. "Aí estamos completamente às cegas", complementa Hugo Rodrigues. "É difícil fazer partos neste contexto." Desconhece-se o tempo de gestação, especificidades do bebé, posicionamento numa circunstância inusitada em que todos os detalhes contam.
"A malta mais experiente acaba sempre
a partilhar a informação"
Para lá da formação e reciclagens regulares que um bombeiro dispõe para fazer face a todas as emergências, partos incluídos, Pedro Ferreira refere que a corporação "tem uma formação interna". "O pessoal que está de serviço e os que têm mais conhecimento na matéria de emergência vão sempre passando a informação", revela.
Iniciativas que pretendem ajudar todos a facilitar o socorro. "Nós temos toda a formação, mas nem todos os casos são iguais, costumamos falar da experiência de cada um, como correu ou o que fizemos", frisa a bombeira Bruna Sousa. Hugo Rodrigues pormenoriza: "Há sempre as conversas até porque, às vezes, é uma maneira de lidarmos com a situação e ficarmos a aprender mais qualquer coisa. "Olha, eu resolvi assim. Eu, resolvi desta maneira". A malta mais experiente acaba sempre a partilhar a informação e é assim que nós vamos aprender também, de certa forma, uns com os outros e com a experiência de todos. Além dos conhecimentos que o pessoal tem, vamos também fazendo instruções e práticas simuladas".
Bombeiro Hugo Rodrigues já teve de se socorrer do tradutor online para conseguir falar com uma grávida e fazer o parto [Fotografia: Mário Vasa]
Hugo Almeida espera que esta realidade nacional chegue ao fim. "Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. Acredito que vai haver uma modificação, temos de acreditar que quem está ao leme vai alterar a situação destas grávidas." Afinal, acrescenta, "as nossas mulheres, as parturientes, sejam de onde forem, merecem mais e quero acreditar no bom senso". Bruna Sousa fala numa realidade "constrangedora". "Os bebés foram feitos para nascer nas maternidades e não nas ambulâncias. Outra coisa, é este número: 15 partos, e isto vai ser cada vez mais a realidade, o que é mau. Haverá consequências, vai ser complicado, vai mexer com o nosso psicológico."
Por enquanto, vale a alegria de reencontrar mais tarde uma mãe e a sua criança que "nasceu" numa ambulância, o que acontece se visitam o quartel (os bombeiros não podem guardar registos desta natureza). "É bonito revê-los, fico de coração cheio por ver que estão bem de saúde e é bom recordar", conta. Quanto ao dia de Natal, em que está de escala, Bruna diz "ser só mais um dia". Mas se o telefone tocar com mais uma grávida a pedir socorro, "seja o que Deus quiser e que nasça num hospital".


