Constituída por equipa de profissionais ligados à música, a mais antiga fábrica de discos a funcionar em Portugal fica numa aldeia em Leiria, e trabalha com nomes sonantes, como Pedro Burmester, Rita Redshoes, Rui Reininho e Salvador Sobral.
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O cerimonial mantém-se. A agulha é pousada cuidadosamente sobre o disco em vinil e, poucos segundos depois, a música liberta-se das colunas, despertando emoções de felicidade, tristeza, euforia, melancolia, entre outros possíveis estados de alma. A grande diferença é que, ao contrário do passado, as vozes e os instrumentos musicais deixaram de ser interrompidos por ruídos ou silêncios, antes desvalorizados, elevando a qualidade do som a um patamar superior.
Certamente, esse será um dos fatores que levam músicos como Afonso Rodrigues, Bárbara Tinoco, Bispo, David Carreira, Joana Gama & Luís Fernandes, Pedro Burmester, Rita Redshoes, Rui Reininho, Salvador Sobral e The Legendary Tigerman a trabalhar com a Grama Pressing, fábrica de vinis situada na aldeia da Cerca, na Maceira, Leiria.
“Temos nomes muito sonantes, e nomes que ninguém conhece”, assume o sócio-gerente Hugo Ferreira, 47 anos. “Trabalhamos para mais de 40 países, principalmente na Europa, de onde nos chegam vários espectros do mercado: música popular, rap, música para instalações, música clássica e experimental, hip-hop romeno, e jazz experimental dos Estados Unidos”, destaca.
Na Grama Pressing, o controlo de qualidade é assegurado por Carlos Matos, 54 anos. Com um percurso profissional ligado à música desde os 17 anos, durante os quais foi DJ, vocalista da banda Ode Filípica e proprietário de uma loja de vinis e de CD, o presidente da Fade In – Associação de Acção Cultural e promotor do festival gótico Extramuralhas não hesitou, nem por um instante, quando foi desafiado para se juntar ao projeto.
“A única coisa que me faltava no currículo era trabalhar na manufatura de discos”, observa Carlos Matos. Os primeiros discos prensados na Grama passam todos pelas mãos do melómano e audiófilo. “Há vários tipos de lesões, como clicks e crateras. Se estiverem com atenção, vão ouvir um click neste disco do António Variações, da Valentim de Carvalho”, concretiza. “Se fosse heavy metal, nem se percebia. Agora, quando é um disco com espaços mais silenciosos, ou se criam momentos mais suaves, qualquer anomalia é notada”, explica.
Ajustar as frequências
Após o disco de António Variações ter sido reprovado no “test pressing”, tiveram de ser feitos novos “stampers”. Tal como sucede quando Carlos Matos deteta “crateras”, apesar de não afetarem o som. Nestes casos, o processo regressa ao início. Mais concretamente, à sala de corte, onde Patrick Scholtens, neerlandês de 48 anos, trabalha a partir dos ficheiros áudio gravados em formato digital, ajustando as altas e muito altas frequências, que podem distorcer a música, e as baixas frequências, que podem fazer a agulha saltar. Faz ainda outras intervenções técnicas para aumentar a qualidade do som.
Habitualmente, cada “stamper” é usado para produzir 500 a 750 discos, pois o desgaste pode conduzir à perda de qualidade. Quando o problema identificado se deve à eletricidade estática, não é necessário voltar à sala de corte, mas acaba por ser uma dor de cabeça, por não ser visível, e originar um som semelhante ao “crepitar das batatas fritas”. Neste caso, a solução passa por usar uma “espécie de secador” antiestático. “A tecnologia evoluiu muito. O que era normal nos anos 1990, agora, é considerado um defeito”, sustenta Carlos Matos. “E os discos têm de sair daqui impecáveis”, sublinha.
Ao comando da Grama está Hugo Ferreira, fundador da Omnichord, editora criada há 13 anos em Leiria, e da Phonograma, constituída no ano passado, com Henrique Amaro, da Antena 3, para reeditar música portuguesa em vinil. Leitor da “Blitz” desde miúdo, Hugo ficou com o bichinho da rádio na Escola Secundária da Maceira, e alimentou-o na Rádio Universidade de Coimbra, cidade onde tirou Direito.
Ligado à Fade In, lançou diversas bandas através da Omnichord, editora que desenvolve ainda projetos educativos, como “A música dá trabalho”, com crianças nas escolas, ou “Omnilab”, residência artística onde jovens do Secundário trabalham com músicos de diferentes bandas, como os First Breath After Coma, Nice Weather for Ducks, Sean Riley & The Slowriders, ou Surma.
Fundada no final de 2021, a Grama iniciou a produção de vinis na Maia. Após ter integrado a sociedade, Hugo Ferreira propôs que a fábrica fosse deslocalizada para a Maceira, onde se situa o grupo de moldes Joferlis, pertencente à sua família, o que lhes proporcionaria apoio em termos de manutenção, logística, gestão e recursos energéticos. Como os outros sócios acabaram por sair, concretizou a ideia há cerca de um ano.
“Não queremos que a Grama seja apenas uma fábrica que produz vinis, mas que tenha uma relação mais próxima com os artistas e com as editoras, e esteja mais atenta aos detalhes, à comunicação e à qualidade”, salienta. Para tal, conta com oito pessoas, uma das quais trocou Águas Santas pela “vida mais calma” de Leiria.
Leonardo Rocha, 30 anos, é músico. Escolheu como nome artístico Saloio, apelido do avô, e editou um disco a solo com dez faixas, em 2023, chamado “Ainda por cima”. É também guitarrista da banda Don Piepie, que resulta da fusão de rock com jazz. “A música alimenta a minha alma, e salva-me todos os dias”, assegura. Com experiência no controlo logístico dos acessos internos em festivais de música, conheceu a Grama através da editora com quem trabalha. Quando aceitou o convite para se juntar à equipa, deixou para trás o curso de Ciências Farmacêuticas, na Universidade da Beira Interior, embora esclareça que “a música alia conceitos da química e da física”.
Diretor de produção da Grama, designação que simplifica, dizendo ser apenas um “operário fabril ou artesão”, Leonardo aprendeu a operar as máquinas com um técnico, e procura aumentar os seus conhecimentos, através da observação de vídeos e da pesquisa na Internet. “O desafio é encontrar soluções para algo que não sei, o que ajuda a cabeça a trabalhar”, justifica, sorridente. O à-vontade com que explica e executa todas as fases da produção de vinis revela, contudo, que domina tanto as propriedades das matérias-primas, como os equipamentos, o último dos quais pertencia à Valentim de Carvalho. Simplificando, o “bolo de PVC” é prensado, o ficheiro do som é transcrito para o vinil, em formato LP ou single, e o disco é cortado à medida. Se ficar com imperfeições, é rejeitado, e repete-se o processo.
Primeiros valem fortunas
Mas só após ser dada “luz verde” na fase do controlo de qualidade do som é que os vinis são produzidos em série. Antes disso, esses primeiros discos a serem prensados são divididos entre a Grama e os artistas, e têm um valor de mercado muito superior às cópias comercializadas depois. “Valem uma fortuna pelo significado de terem sido os primeiros exemplares”, garante Carlos Matos.
Ocupam, por isso, um lugar de destaque nas estantes da Grama, onde são arrumados após serem identificados com um “label” [rótulo] colado no vinil, que antes passa 24 horas no forno para não ganhar humidade, e colocados dentro das capas, cujo controlo de qualidade artístico é feito por João Diogo, designer gráfico que colabora com a Alma Mater Records, da banda gótica Moonspell. Além dos tradicionais vinis pretos, os discos podem ser prensados noutras cores ou misturas de cores. Os clientes é que decidem.
Hugo Ferreira não esconde, porém, a sua apreensão por as fábricas de vinis na Europa terem “mais do que triplicado” desde a pandemia de covid-19, o setor da música estar a “mudar constantemente” e se viver um “clima de incerteza” a nível económico. “Sentimo-nos como os vendedores de automóveis ou os donos dos restaurantes, porque sabemos que comprar um vinil não é uma prioridade”, reconhece.
Em contrapartida, acredita que os discos, enquanto objetos, estão associados a períodos importantes da vida e a memórias especiais. E lembra que há capas que são autênticas obras de arte, e merecem ser partilhadas. Com uma coleção de mais de dez mil exemplares em casa, todos os dias, ao jantar, Hugo pega na agulha e coloca-a cuidadosamente sobre um vinil, e partilha esse momento de “resistência” com a mulher e os dois filhos.