A vida como ela é
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Há duas semanas que o tema Anjos versus Joana Marques invade de forma obsessiva e constante os meios de comunicação nacionais. Daqui a meia década, se eu quiser explicar este caso peculiar a uma criança ou a um estrangeiro, será mais ou menos assim: era uma vez uma humorista que tinha o dom de encontrar atitudes ou tiradas ridículas e infelizes entre os famosos, e era tão boa a fazê-lo que ela própria se tornou uma figura pública. Passava as manhãs na rádio a pôr Portugal a rir, até que um dia dois rapazes se ofenderam com ela e decidiram processá-la, exigindo um milhão de euros. Porquê, perguntará quem ouvir a história. Afinal, o que é que a Joana fez de tão grave? Nada, apenas mostrou como eles desafinaram ao cantar o hino nacional.
Para quem estiver de fora, a importância desmesurada que o país está a dar a este caso é paradigmática do comportamento de ilhéus umbiguistas, para quem os acontecimentos nacionais de sobrepõem ao caos que se instalou no Mundo. O Planeta está literalmente a explodir de calor, a grande potência americana é desgovernada por um narcisista infantil e inconsequente com menos sentido de estado do que o gato selvagem que ocupa as espreguiçadeiras do meu jardim, a guerra que alastra no Médio Oriente está a levar à maior transformação de sempre naquela zona do Globo, a Rússia continua em guerra com a Ucrânia, a Europa prepara-se paulatinamente para entrar num conflito à escala mundial, e o que faz Portugal? Mergulha num caso judicial entre uma humorista de primeira e dois irmãos magoados com o sentido de humor alheio. Dois irmãos que desafinaram a cantar o hino.
O comentador Alberto Gonçalves, presença diária na Rádio Observador, alertou há dias para o enfoque do debate ser em torno da liberdade da expressão dos humoristas e não de outros atores da vida pública, alertando para o facto de políticos ou até escritores pretenderem ilegalizar o Chega por não concordarem com a sua existência, usando o espaço público para expressar as suas opiniões. Passo a citar: “A indignação da maioria em volta do processo à Joana Marques nem sempre se estende a outras tentativas de condicionar o discurso alheio (...). Temos comentadores e até políticos, indivíduos que ocupam cargos ditos de responsabilidade a exibir um certo apreço pela possibilidade de se condicionar e de restringir opinião”. Tais comentários pretendem calar quem não lhes interessa que exista na vida política. O apetite de calar os outros, apenas porque expressam opiniões ou ideologias com as quais não se concorda, não é um ato moral, é um ato de censura. Chega a ser irónico que uma certa Esquerda, que se considera democrática e esclarecida, se arvore no direito de querer calar a nova Direita menos ponderada e o seu enfático líder. Voltamos a um dos pilares da democracia que é a liberdade de expressão.
Entretanto, enquanto o processo corre, desejo à Joana que nunca deixe de voar e de nos fazer rir todos os dias com o seu apurado bom senso, tão característico do seu trabalho.