No rasto da tragédia. O papel das equipas forenses nos grandes acidentes

Tiago Petinga/Lusa
Para lá do enorme sururu mediático que sempre envolve os grandes desastres, há um trabalho invisível que devolve identidade às vítimas e assegura respostas às famílias, uma espécie de parceria entre os elementos da Polícia Judiciária e do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Eis os passos dados pelos peritos nestes cenários. E os obstáculos que enfrentam.
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Ainda o comum dos cidadãos tentava processar a trágica notícia do descarrilamento do Elevador da Glória, em Lisboa, que ditou a morte de 16 pessoas, e já dezenas de peritos forenses trabalhavam incessantemente para dar respostas. Quem eram as pessoas que perderam a vida naquela quarta-feira dramática? E, afinal, o que aconteceu exatamente para o ascensor avançar desgovernado calçada abaixo? Assim que souberam do descarrilamento, em ambos os casos através da comunicação social, os responsáveis da Polícia Judiciária (PJ) e do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) puseram-se em ação. Não tardou a seguir para o local uma equipa da PJ, para documentar o espaço ao pormenor e recolher todo o tipo de provas físicas, tanto na perspetiva de uma eventual investigação criminal, como do processo de identificação das vítimas, e uma outra, do INMLCF, composta por médicos-legistas e técnicos, para etiquetar cadáveres e fazer colheita de vestígios. Na sombra, havia outros passos a serem dados a ritmo acelerado.
No caso do Instituto de Medicina Legal, ainda nem se sabia exatamente o número de vítimas e já estavam a ser disparadas mensagens para os elementos que integram a equipa de desastres de massa, na eventualidade de ser necessário deslocar um número elevado de peritos para o local. À meia-noite, já estavam reunidas, nas instalações da instituição, em Lisboa, três equipas. Uma local, outra que viajou do Porto, uma outra de Coimbra, onde seguia o próprio presidente do INMLCF, Francisco Corte-Real. Trabalharam noite dentro, de manhã também, foram depois rendidos por outros colegas. Ao todo, estiveram envolvidos neste processo 37 elementos, 22 médicos e 15 técnicos (e isto sem contar com os peritos da PJ).
Um trabalho minucioso e de elevada responsabilidade, em que se recolhem impressões digitais, vestígios de ADN e fórmulas dentárias. São estes dados que, depois de devidamente cruzados com as amostras de referência, vão permitir chegar à identificação dos cadáveres. Às 7.30, pouco mais de 12 horas após a tragédia, já as vítimas portuguesas estavam plenamente identificadas. No caso dos cidadãos estrangeiros, o processo ficaria concluído dias depois. Enquanto isso, e depois de feita a devida perícia no local, a PJ continua a investigar o caso - por muito que não haja, até ao momento, sinais de sabotagem. Uma primeira análise do inspetor do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), que se deslocou à Calçada da Glória na manhã seguinte, revelou que o cabo que unia as duas cabines cedeu e que o sistema de emergência não foi suficientemente redundante.
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A descrição ajuda a perceber o papel fulcral dos peritos forenses nos grandes acidentes, em que a cooperação entre equipas é fundamental. A ideia é vincada uma e outra vez por Fernando Viegas, chefe do Setor de Local do Crime e especialista do Laboratório da Polícia Científica da PJ, e por Francisco Corte-Real, presidente do INMLCF. Ambos acederam a falar à "Notícias Magazine" para explicar o papel dos seus peritos em tragédias como esta, os passos a dar, os obstáculos a superar, os cuidados a ter. Importa ressalvar que, ainda antes da entrada em ação dos peritos forenses, há uma primeira linha de intervenção, absolutamente prioritária, assegurada pelo INEM. Francisco Corte-Real é perentório. "A prioridade é sempre assegurar os vivos." Paralelamente, há ainda uma intervenção da PSP ou da GNR, no sentido de isolar e proteger a área, de controlar acessos, de gerir o trânsito.
Com a situação já estabilizada, há então via aberta para os peritos forenses. Em teoria, compete à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil ativar estes meios. Porém, o que por vezes acontece, e que aconteceu no caso do Elevador da Glória, é que estas entidades se antecipam. Fernando Viegas explica. "Identificámos que tinha havido um acidente muito grave e avançámos para o terreno. A experiência diz-nos que, quanto mais depressa começarmos a fazer o nosso trabalho nestas situações, melhor é. Porque já sabemos que a pressão depois vai aumentar." O especialista acrescenta que, excluindo cenários de catástrofes naturais, como um terramoto ou um tsunami, o espaço físico onde ocorre um incidente assim é sempre encarado pela PJ como o "local do crime". "Mesmo que depois se venha a perceber que não há nenhum indício de crime", salvaguarda. E, portanto, os peritos do Laboratório da Polícia Científica vão fazer o tal trabalho de recolha de provas físicas (sejam explosivos, fragmentos, ADN, registos digitais, etc.) e documentação do local. E sim, todos os detalhes contam. "Temos de estar atentos a todos os pormenores. Quando foi o incêndio de Pedrógão [2017], fizemos o levantamento de um dado espaço e percebemos que, apesar de as árvores terem de estar cortadas X centímetros em relação à estrada, não estavam. No dia seguinte, voltámos para completar a informação e já tinham sido cortadas. Por isso é que é fundamental documentar tudo."
Das impressões digitais ao ADN
Depois, há a tal vertente de identificação das vítimas, em que a recolha de elementos como roupa, documentos e carteiras pode ser fundamental. O processo segue o protocolo internacional DVI (Disaster Victim Identification; em português, Identificação de Vítimas de Desastres), um conjunto de diretrizes estabelecidas pela Interpol, para identificar vítimas em acidentes de grande escala. O processo, que envolve tanto o INMLCF como a PJ, contempla cinco etapas: o local do incidente, a fase post-mortem, a investigação ante-mortem, a reconciliação e o balanço. Francisco Corte-Real nota que, todos os anos, os elementos que integram a equipa médico-legal de desastres de massa, fazem um curso específico de DVI. Mas voltemos às etapas. Num primeiro momento, a prioridade é então localizar, numerar e fotografar os corpos, recolher objetos pessoais, preparar o transporte dos cadáveres em sacos numerados para necrotérios provisórios (no caso de o serviço médico-legal mais próximo não ter capacidade para acolher todas as vítimas).
Segue-se a fase post-mortem. Francisco Corte-Real detalha os métodos possíveis para identificar vítimas. "Existem métodos científicos (ou primários) e métodos secundários, sendo que devemos dar sempre prioridade aos primeiros. Os métodos científicos incluem as impressões digitais, a genética ou a fórmula dentária [sendo que a genética é assegurada por biólogos que trabalham em laboratório e a fórmula dentária por dentistas com formação DVI, que colaboram com o INMLCF e também integram a tal equipa de desastres de massa]. Devemos ter sempre um dos três, no mínimo. Quanto aos métodos secundários, passam pelo reconhecimento visual, por objetos pessoais que sirvam de identificação, por tatuagens, etc." Paralelamente, decorre também a fase ante-mortem, coordenada pela PJ. "Aí, vamos procurar informações que vão permitir a comparação com o que recolhemos na fase post-mortem", pormenoriza o responsável. "A primeira fase passa por falar com familiares e amigos, na tentativa de recolher informações que possam ser úteis", adianta Fernando Viegas. Daí que, muitas vezes, sejam criados gabinetes de crise ou linhas diretas para entidades oficiais e familiares das vítimas.
E se, no caso dos cidadãos nacionais, o processo é relativamente simples, dado que, sendo possível recolher impressões digitais, podem depois ser comparadas com a base de dados do Registo Civil, o panorama complica-se no caso dos cidadãos estrangeiros. Fernando Viegas especifica. "Precisamos sempre de uma amostra de referência que certifique que se trata mesmo daquela pessoa. E a questão é que há países que nem têm registos de impressões digitais. Aí temos de ir por outras vias e torna-se mais difícil." Nalguns casos, a solução é recolher amostras de ADN de familiares, ou de objetos pessoais dos falecidos. Noutros, a única opção é pedir registos aos dentistas das vítimas, para validar a identificação através da fórmula dentária. Segue-se a reconciliação, em que os peritos da medicina legal e da PJ cruzam os dados post-mortem com a informação ante-mortem, para chegar a uma correspondência que permita a identificação. Há ainda uma quinta fase, de balanço, que funciona como uma avaliação de desempenho, para "afinar" futuras intervenções.
Tiago Petinga/Lusa
Para lá de todos os obstáculos no terreno, seja a obtenção de dados ante-mortem junto das entidades de países estrangeiros, ou a dificuldade em recolher indicadores primários nos casos de corpos que ficam carbonizados, por exemplo, há a pressão de concluir o trabalho o mais depressa possível, para que os defuntos possam ser entregues às famílias. Por outro lado, a pressão - mediática, política ou social - não pode, em caso algum, beliscar a qualidade e o rigor das perícias. Há ainda o impacto emocional de trabalhar em cenários brutais, com um leque alargado de vítimas. Francisco Corte-Real assume que os médicos-legistas vão, ao longo dos anos, arranjando "mecanismos para se defenderem". E que quase se obrigam a criar uma carapaça, "vendo o corpo como um objeto de estudo". Ainda assim, reconhece, há autópsias particularmente difíceis, sobretudo quando se trata de crianças. E ressalva que o INMLCF conta com uma equipa de psicólogos, para o que der e vier.
Em casos em que haja suspeitas de falha técnica ou negligência de manutenção, o Ministério Público ou a PJ podem ainda ordenar perícias forenses, conduzidas por engenheiros especializados. Luís Gomes Vale, engenheiro mecânico que é solicitado para efetuar perícias forenses há quase 20 anos - ainda que nunca o tenha feito em acidentes com vítimas mortais -, detalha o processo. "O tribunal contacta a Ordem dos Engenheiros, que por sua vez nomeia um técnico que faça parte da bolsa de peritos e que esteja habilitado a fazer apreciação à investigação naquela vertente." No caso de se tratar de uma averiguação de responsabilidades num cenário de acidente, é preciso perceber "se houve uma falha no equipamento e se foi feita a devida manutenção, se houve condições externas relevantes, entre outras coisas." Para isso, o engenheiro forense vai "inspecionar todas as componentes do veículo" e fazer um registo fotográfico de tudo. A essa primeira fase do trabalho, junta depois a análise de folhas de obras, de relatórios efetuados pelos técnicos encarregues pela manutenção, de eventuais observações registadas. "É um trabalho demorado, que pode levar horas ou até dias. Desde logo, porque o perito vai ter de estudar o tipo de equipamento, perceber quais os seus sistemas de segurança e locomoção, ver que componentes foram substituídos, que falhas se verificaram. É um processo que tem de ser feito com muita calma, sem holofotes à volta, e com atenção ao mais ínfimo pormenor." Um trabalho invisível, tal como o dos peritos da PJ e o da INMLCF. E ainda assim fundamental.

