A pele, o beijo, o toque e o tempo. Ter cancro obriga a descobrir uma nova intimidade devido aos efeitos devastadores dos tratamentos. É preciso aprender a explorar outras partes do corpo, novos rituais, formas diferentes de prazer. Um caminho feito a dois, por tentativa e erro, por vezes com muita dor.
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Cristina Pereirinha, quase a fazer 47 anos, recebeu em 2021 um diagnóstico de cancro de mama triplo negativo, e enfrentou, após a primeira vaga de tratamentos, o vaginismo. Dores profundas nas relações sexuais incompatíveis com penetração, secura vaginal forte que foi superando com a autodescoberta do corpo, dilatadores e lubrificantes e a ajuda do marido e apoio médico e psicológico. Marta Morgado, de 49, cancro no ovário identificado em 2020, teve de reaprender tudo depois quatro meses internada e 40 dias algaliada. Um longo processo que cumpriu sem companheiro, e que depois preferiu prosseguir como estava: a solo com o seu minivibrador. Ana Luísa Janes, 41 anos, soube que tinha cancro de mama hormonal em 2020, debate-se agora com a falta de desejo sexual e cansaço. O marido tem sido o companheiro desta travessia, que ainda é feita de “injeções mensais e medicação diária”.
Estas três mulheres ainda lutam contra os pesados efeitos secundários da doença – que arriscam dilacerar a intimidade – mas querem trazer para cima da mesa um tema que ainda é tabu e ajudar outras a fazer o caminho de forma menos dolorosa. A produção da Disney+ “Dying for sex”, protagonizada por Michelle Williams, trouxe à luz a longa caminhada para recuperar a sexualidade quando se enfrenta uma recidiva. “É um testemunho corajoso e necessário”, diz Mónica Gomes Ferreira. Para a médica e cofundadora da MS Medical Institutes, “produções como estas podem e devem abrir espaço para se falar de sexo no contexto da oncologia”. Contudo, apesar dos aspetos positivos da “humanização da experiência oncológica” desta trama, alerta também para o perigo da “criação de expectativas irreais, se não forem contextualizadas com cuidado”.
“Aquilo que eu e o meu marido tínhamos como garantido no sexo deixou de existir.” Cristina Pereirinha, empresária e responsável pela publicação Oncoglam, conta: “Com os tratamentos, sentia-me dorida, não gostava que me tocassem, sentia algum desconforto com o meu corpo. Então, comecei a tomar duches mais prolongados, a sentir a água a deslizar pela pele, a sentir prazer numa massagem de relaxamento, tive de fazer algumas coisas para me sentir bem comigo própria para, depois, me poder dar”. “Antigamente, havia muito mais a disposição para um ‘vamo-nos enrolar’ e podia ser feito de forma mais rápida, e estava bem. Agora isso não acontece, temos quase um encontro marcado, um jantar com horário, é um ato mais cuidado e quando a criança (filho) não está em casa. Optámos por outra intimidade”, detalha. Ganhou-se, então, espaço para a “pele, o beijo, o toque e o tempo a sós e a dois”.
Ana Luísa Janes, mãe de três filhos, empresária e responsável da plataforma As Rosinhas (que dá apoio a mulheres mastectomizadas), também passou a dar mais tempo... ao tempo. Apesar de não se debater com o problema da secura vaginal, é a escapatória à rotina que a tem ajudado a reforçar os laços íntimos. “Recentemente, fomos para a Tailândia sozinhos, sem os filhos e voltou tudo ao que era antes. Agora, no regresso a casa, passa-se um mês sem que haja de novo essa possibilidade. O trabalho, as exigências, o quotidiano, o cansaço, tudo isso são estímulos que puxam para baixo.” Tem valido a conversa franca, aberta e bem-disposta entre o casal para encontrar novas soluções.
A compreensão do companheiro é vital no processo. Mas, se não existe, é melhor que a vida siga de outra forma. Marta Morgado, vice-presidente no Movimento Cancro do Ovário e Outros Cancros Ginecológicos (Associação MOG), foi sujeita a cirurgias de tal forma invasivas que esteve impedida de ter contactos íntimos durante cerca de seis meses e carrega hoje uma cicatriz da “púbis ao esterno”. O percurso tem sido feito sobretudo sozinha, sem parceiro íntimo, nas duas vezes que lutou contra o cancro, em 2020 e 2023. “Não retomei a minha vida sexual, não tenho ninguém, mas tenho esta companhia incrível [o seu minivibrador].” E acrescenta: “A minha perspetiva sexual mudou para melhor, respeito mais o meu corpo, valorizo o toque, a empatia, a comunicação, o sexo como uma coisa menos animal, com mais tempo e mais seletivo”.
Lubrificantes, dilatadores e brinquedos
As alternativas sexuais que encontrou têm levado Marta Morgado a espalhar a palavra. “Fizemos um encontro com mulheres e fui comprar vários minivibradores para poder apresentar às associadas”, revela, contando que a iniciativa foi um êxito. Maria do Céu Santo, especialista em medicina sexual, vinca que “a secura vaginal é muitas vezes ultrapassável com lubrificantes específicos [não hormonais] e hidratantes vaginais”, podendo o processo ser complementado com “brinquedos sexuais”. Estes dispositivos “não substituem ninguém”, sublinha, mas podem ajudar: “O sal e a pimenta não substituem o bife, mas podem ajudar a dar paladar”.
No caso dos dilatadores, a radioncologista e especialista em medicina sexual Mafalda Cruz alerta para a necessidade de serem usados quase como ferramenta preventiva para a saúde sexual feminina. É essencial, por isso, que os “médicos expliquem desde logo os efeitos secundários dos tratamentos no plano sexual e comecem a dar toda a informação”. Dos riscos às novas limitações íntimas, informação é, acima de tudo, caminho para o futuro.
Mafalda Cruz assiste a duas realidades distintas: “Vemos casais sem sexo durante o cancro e mulheres que têm sexo com muita dor ou sem prazer nenhum. Temos relatos de que elas se sentem violadas – dizem mesmo ‘violadas’ – quando têm sexo”. Um silêncio que as empurra para a dor, para o sexo como um dever, por medo do abandono, o que não é raro. A radioncologista conhece doentes abandonadas pelos companheiros, mas também lembra que “muitas mulheres aproveitam esta altura para ressignificar o que querem da vida”: “Muitas mudam de emprego, terminam relacionamentos ou reatam relações familiares, torna-se mesmo um ponto de viragem”.
Também há casos em que os “companheiros assumem de tal forma o papel de cuidadores que quase têm receio de tocar nas parceiras porque há medo, respeito pela doença, temor de que o sexo possa fazer mal”. E outros em que “há muito diálogo entre o casal”, que consegue encontrar “satisfação num abraço, por exemplo”.
Pacientes e médicos são unânimes: ainda há muito por fazer neste cruzamento entre a oncologia e a sexualidade. Mafalda Cruz pede “mais formação dos profissionais de saúde”, consultas com “mais tempo para falar de tudo, com privacidade e sem interrupções constantes”, mais “recursos humanos e sexologia nos casos mais difíceis”. A ginecologista Mónica Gomes Ferreira acrescenta a necessidade de “integração de psicólogos e sexólogos nas equipas multidisciplinares”, “criação de protocolos que incluam a avaliação e apoio à função sexual” e “espaços seguros para que os doentes possam abordar estas questões sem julgamento”.
A série “Dying for Sex” levanta a possibilidade de existirem espaços de intimidade para casais em contextos de longos internamentos oncológicos. Mafalda Cruz fala no “conceito do ‘quarto da privacidade’, sobretudo em lares e cuidados paliativos”.
Cristina Pereirinha lembra-se dos momentos a sós que conseguiu ter com o marido. “Estive internada 20 dias, ele ia ver-me todos os dias e, em alguns momentos, estávamos sozinhos. Deitava-se comigo na cama, massajava-me as pernas e as costas, era intimidade. É importante que haja este momento. Às vezes, estávamos uma ou duas horas calados, mas sentir o quentinho do corpo dele comigo acalmou-me muitas vezes.”