Pai aos 50
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No fim, tive de ir levá-la ao aeroporto, para ir ter com a dona. Ela percebeu que alguma coisa transformadora se passava. Mas, ao mesmo tempo, seguia-me pelas frinchas da gaiola, e eu continuava ali. Enquanto o dono continuasse ali, tudo estava bem. Eu via o brilho do seu olho preto, lindo, e sentia ainda mais fundo na carne o quanto a traía. Até que o funcionário da secção de cargas conferiu os papéis:
– Sim senhor, tudo certo.
E eu corri dali para fora.
Não houve uma vez que circulasse por Lisboa, nos quatro anos e meio seguintes, em que não a procurasse na multidão. Desejava ardentemente vê-la, voltar a sentir as suas patinhas macias nas minhas mãos, a sua cabeça no meu colo, e ao mesmo tempo temia que isso alguma vez acontecesse. E se ela não me reconhecesse? Pior: e se não só me reconhecesse, mas celebrasse o nosso reencontro?
O fim de um casamento é sempre uma tragédia. E, para os cães, quase nunca deixa de ser o desaparecimento definitivo de alguma coisa, porque, mesmo quando as pessoas decidem partilhar direitos e responsabilidades em torno do bicho, ao fim de algum tempo o trabalho que isso dá prova-se maior do que a vontade de fazê-lo. Além do que, neste caso, havia dois mil quilómetros de oceano de permeio.
De qualquer maneira, agora já não valeria a pena. A Jasmim morreu. Foi o cão mais inteligente e terno que conheci. Resgatámo-la ao quintal de um vizinho aqui da Terra Chã, onde era negligenciada, e a certa altura foi destinada ao canil, e nunca mais deixou de se empenhar em ser tudo aquilo com que se pudesse sonhar num animal.
Adaptou-se aos donos, adaptou-se ao Melville, adaptou-se ao Gauguin. Passeava sem trela, não subia para cima das pessoas e jamais tocaria num pedaço de comida que não lhe fosse atribuído. Adorava passear em família. Adorava deitar-se no sofá durante uma tarde de domingo a ver televisão. Adorava brincar com o Melville no jardim.
E é capaz de ter sido feliz em Lisboa, onde foi tratada como nenhum outro cão foi tratado antes. Mas, ao mesmo tempo, custa-me que não tenha podido continuar na ilha. Viver no campo é maravilhoso para toda a espécie de ser vivo, mas para nenhum mais do que para aquela border collie tão grata pelo que a vida lhe trouxesse como ciosa daquilo que já lhe tivesse trazido.
Não cheguei a dar-lhe a oportunidade de se provar boa com crianças. Alguma coisa dentro de mim tenta forjar a suspeita de que jamais o seria. Provavelmente, seria perfeita. Mas não é por isso que já pedi ao Mário um azulejo com a sua efígie para lhe criar uma campa igual à do Melville, na matinha onde o Artur e os demais filhos que tenhamos aprenderão sobre a morte. É porque a Jasmim era desta casa e esta casa dela.