Há quem há muito acompanhe o tema e tenha como lema de vida estar precavido. Há quem tenha percebido, com a pandemia, que o melhor era arranjar forma de sobreviver sem ajuda. Quem dedique armários inteiros a stocks de comida e kits de emergência. Há até quem opte por treinos de sobrevivência.
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André Lino, feirense de 39 anos, empresário e pai de três filhos pequenos, está habituado a um certo ceticismo alheio por ser particularmente precavido. “Volta e meia dizem-me que sou tolo”, assume, bem-disposto. Ele não se rala. “A verdade é que se de hoje para amanhã acontece alguma coisa, vou estar muito mais preparado”, sublinha, como quem responde aos críticos. Tem, em casa e no carro, mochilas prontas para a eventualidade de ter de fugir de repente, armários repletos de mantimentos e ferramentas de toda a espécie, engendrou até várias formas de poder cozinhar e ter energia, mesmo que o mundo como o conhecemos entre em colapso – ainda que apenas por algumas horas, como aconteceu durante o apagão de 28 de abril. Já lá vamos, aos detalhes de toda essa preparação extensa e minuciosa. Do princípio. O interesse de André por esta área nasceu na sequência da pandemia. Por um lado, porque o impacto daquele evento o despertou para a possibilidade de tudo mudar num sopro. Por outro, porque, algures nesse período, foi dar com um podcast de um youtuber brasileiro, dedicado ao sobrevivencialismo. O “bichinho” veio para ficar. Daí em diante, passou a ler mais sobre o tema, a seguir youtubers estrangeiros que alertam para estes tópicos, viu até vários documentários sobre o assunto.
Aos poucos, começou a preparar-se para o que desse e viesse. Ou, como gosta de dizer, “preparar-se para o pior, mas esperar o melhor”, uma velha máxima dos sobrevivencialistas ou preparadores. E em que consiste esta preparação? André hesita pela primeira vez, e com isso já está, de alguma forma, a responder à pergunta. “Essa é uma das regras: o segredo”, atira. A ideia é esta: se divulgar tudo o que tem, na eventualidade de haver uma catástrofe fica mais vulnerável às visitas indesejadas, e a probabilidade de os recursos darem para menos tempo é grande. Ainda assim, em nome da sensibilização para o tema, lá acede a quebrar o princípio do silêncio, para partilhar as suas estratégias – pelo menos, uma parte delas.
Em casa, tem hoje um grande armário dedicado à preparação. Numa das portas há comida, o habitual stock de enlatados, feijão, flocos de aveia, condimentos, líquidos, café, várias garrafas de plástico onde armazena arroz e vários tipos de grão, entre muitas outras coisas. A ideia é “ter comida suficiente para duas semanas, para toda a família”. Numa outra porta, estão ferramentas de toda a espécie, kits de higiene, desde os mais rudimentares, com roupa interior e pasta dos dentes, aos mais complexos, com tesoura, Betadine, fio dentário, álcool, papel higiénico, sabão, há até um kit de costura. Além de utensílios e ferramentas que podem ser úteis no caso de uma qualquer catástrofe. Há ainda um outro bloco onde guarda as mochilas, umas prontas para sair numa emergência – uma por cada elemento da família e devidamente adaptadas às necessidades de cada um –, outras prontas para encher com os kits previamente preparados. Num outro ponto da casa, tem ainda carne seca pendurada, para qualquer eventualidade. “É uma filosofia de vida, um homem prevenido vale por dois”, justifica.
E a preparação não acaba aqui. Há uma power station, capaz de fornecer energia a toda a casa, na eventualidade de uma disrupção, vários sistemas de purificação de água, duas ou três alternativas para cozinhar, até painéis solares com bateria e um sistema que permite ficar off-grid (fora da rede), para evitar situações como a do último apagão, em que a falta de energia da rede fez com que uma parte dos painéis solares deixassem também de funcionar. “Sendo que neste caso também foi um investimento que fiz, com o objetivo de reduzir para metade a minha fatura de eletricidade”, explica. O princípio, reitera, é ter “sempre várias redundâncias para a mesma situação”. E o trabalho está longe de terminado. Para garantir que nada falha, revê tudo o que tem, no mínimo, de dois em dois meses. Depois, com base no que lê e vê na Internet, vai alargando a lista de utensílios e soluções. Há ainda uma outra vertente que faz questão de destacar: “A preparação não passa só por termos coisas materiais preparadas. Passa também pela aquisição de competências. Aprendi a fazer suporte básico de vida, a cozer pão, a coser roupa, comecei a tratar do meu corpo, porque também não vale a pena ter equipamento de sobrevivência se depois o corpo não permite sobreviver. Tudo isto é importante e o conhecimento não pesa na mochila”.
O documentário do fim do Mundo
Puxemos agora a fita atrás, algures até meados do século XX. Foi nesse período, entre as décadas de 1950 e 1960, durante a Guerra Fria, que o sobrevivencialismo começou a ganhar forma. Na altura, o medo de uma guerra nuclear levou muitas pessoas a prepararem-se para cenários de catástrofe. Os primeiros sobrevivencialistas armazenavam comida, treinavam para emergências, construíam até abrigos nucleares. Daí em diante, o movimento foi crescendo. Ora por culpa da crise do petróleo, ora à boleia dos ataques terroristas, ora à conta de grandes catástrofes naturais, como o furacão Katrina. Com a entrada no século XXI, a Internet veio dar ainda mais tração ao movimento, com a partilha de vídeos e a criação de fóruns que abriram caminho à formação de comunidades globais. Hoje, o movimento é cada vez mais diversificado, abrangendo temas como a autossuficiência, a resiliência, a preparação psicológica ou até a autodefesa. Quanto a Portugal, a tendência ganhou mais força nos últimos anos, também por culpa da pandemia, como aconteceu com André Lino.
Mas há quem tenha começado esse trabalho bem mais cedo. É o caso de Paulo Guerreiro, operador de condução natural de Almada, que há 13 anos fundou a “Portugal Preppers Network”, hoje com perto de cinco mil seguidores no Instagram. Escuteiro desde que se lembra de ser gente, Paulo aprendeu cedo a ser um preparador. Depois, quando em 2012 se começou a anunciar o fim do Mundo, em função do calendário maia, lembra-se de ver um documentário que o marcou: “Doomsday Preppers” (disponível em Portugal na Prime Video), precisamente sobre americanos que se estavam a preparar para o fim do Mundo como o conheciam. “Nessa altura, fiz alguma pesquisa a nível nacional, para ver se havia em Portugal alguma coisa relacionada com o tema, e vi que não. Foi aí que decidi avançar com o projeto Portugal Preppers, no Facebook, inicialmente mais num tom de brincadeira. Desde então foi crescendo e nunca mais parou.”
Primeiro, as publicações que fazia eram sobretudo viradas para as “bug out bags”, mochilas de emergência que devem conter tudo o que alguém precisa para sobreviver de forma autónoma durante 72 horas, caso tenha de abandonar abruptamente o lar (ver caixa). Com o tempo, o leque de conselhos foi-se alargando, do armazenamento de stock de alimentos em casa aos primeiros socorros, passando pela questão da autossuficiência. Passou a haver também um enfoque cada vez maior na preparação das famílias e na necessidade de ter um “plano familiar de emergência” bem definido. “Eu tenho um plano definido com a minha família, que é diferente para cada um de nós. Se algo acontecer, cada um de nós sabe exatamente o que tem de fazer.”
Depois, claro, não pode faltar o stock de água e comida, que dá “mais ou menos para um mês”. “Sendo que vou sempre fazendo uma gestão, para não deixar que nada se estrague.” Paulo Guerreiro, que até já tem vindo a dar formação nas escolas acerca deste assunto, frisa também a importância da “diversificação de competências”. “Quanto mais soubermos fazer, menos teremos de carregar na eventualidade de algo acontecer. Além de que não adianta termos as mochilas mais caras e bem apetrechadas do Mundo se depois não soubermos usar o que lá está.” Por isso, de tempos a tempos, faz questão de ir para o mato com a família, testar os equipamentos, aprender a fazer fogo, treinar skills de vários géneros. E se, no arranque do projeto, eram poucas as pessoas que ligavam a estes temas, Paulo não tem dúvidas de que há hoje um interesse crescente, em particular desde a pandemia, e ainda mais desde o célebre apagão. Outro dado curioso é constatar que há também cada vez mais mulheres a interessar-se pelo assunto, em particular pela “vertente da autossuficiência”.
O papel do apagão
É o caso de Isabel Petinga, setubalense de 47 anos, funcionária pública. O bichinho começou a ganhar forma bem cedo, ainda na casa da mãe, onde sempre fez questão de ter um stock de alimentos. Curiosamente, o mesmo acontecia em casa dos pais do marido. Calhou depois de se juntarem, sendo que, durante muito tempo, ele sempre teve “mais apetência para a parte da preparação” do que ela. Depois, na sequência da pandemia, acabou por ficar mais sensibilizada para o assunto. Coincidentemente, o marido criou o “Grupo Nacional de Preparação e Autossuficiência”, hoje presente em todas as grandes redes sociais. Isabel aderiu de imediato e o gosto foi-se entranhando. “Nessa altura, já andava a acompanhar mais a parte da preparação. Desde logo porque quem é mãe é uma preparadora nata. Temos de andar sempre com uma mochila que tenha uma série de coisas essenciais, muitas vezes até a mais. A preparação é um bocadinho isso. Sendo que nós também temos nas nossas malas coisas que o comum das pessoas não traz, como um rádio, um apito ou uma navalha.” Entre outros cuidados. “Temos sempre stock em duas casas, na nossa e na da minha mãe, as malas prontas, planos delineados para o caso de haver uma emergência. Como temos três animais, já sabemos que se houver alguma coisa, cada um toma conta do seu.”
Só no WhatsApp, o “Grupo Nacional de Preparação e Autossuficiência” conta com cerca de 700 pessoas, havendo dezenas de salas dedicadas a temas diversos, para que cada um possa aprofundar a área que mais lhe interessa. Uma sobre bunkers e abrigos subterrâneos, outra sobre energias renováveis, outra sobre cuidados médicos, há até uma dedicada às mães, para saberem como se preparar devidamente para que nada falte aos filhos. Volta e meia, o grupo também organiza encontros. Em outubro passado, houve até m treino S.E.R.E. (treino básico de técnicas de sobrevivência, evasão, resistência e escape), em Setúbal. “É um treino exigente do ponto de vista físico, mas que prepara para uma série de situações.”
António Dias, professor de 57 anos, residente em Alcochete, há muito se preocupa com o tema. Ossos do ofício, em parte. “Eu sou professor de Ciências, dou aulas ao terceiro ciclo e a questão do risco sísmico faz parte do programa do 7.° ano. Por isso, todos os anos aproveito para sensibilizar os alunos para a importância de terem um kit de emergência e para eles próprios procurarem chamar a atenção dos pais para isso. Continuo a acreditar que a melhor forma de passar mensagens como esta é através da escola e dos miúdos.” A título pessoal, a preocupação com a preparação é ainda mais antiga. “Já vem do meu tempo da tropa. Fui militar operacional durante dez anos, fazia muitos exercícios no campo e sempre tive essa preocupação de ter um kit de sobrevivência. Depois, quando me mudei para Alcochete [é natural de Oliveira do Bairro], foquei-me ainda mais nisso, porque é uma zona com um risco sísmico grande. Tenho o meu kit de emergência sempre preparado e ao longo dos anos tenho vindo a acrescentar coisas novas.” O mais recente, na sequência do apagão, foi um carregador de telemóveis solar, que encomendou pela Internet. Mas também não lhe faltam a habitual mala de primeiros socorros, o rádio, um stock de pilhas, alimentos enlatados, bolachas, barras energéticas, três garrafões de água que estão sempre de reserva, uma manta de aquecimento, um extintor, um fogão de campismo, lanternas, fósforos, um isqueiro. Dicas que procura passar os alunos e que recentemente assumiram particular relevância. “Tive um feedback muito positivo, acho que começaram a perceber que não falamos apenas de situações teóricas e passaram a dar mais atenção a estas questões. Aliás, até tive um aluno que no dia seguinte me veio dizer: ‘O meu pai quer agradecer-lhe por nos chatear tanto com o kit de emergência, porque por sua causa comprou um rádio a pilhas e foi o que nos permitiu ouvir as notícias durante o apagão’.” Já diz o ditado: homem prevenido...
O que levar numa mochila de emergência
- <div>Água (em garrafa ou cantil)</div>
- <div>Filtro de água portátil</div>
- <div>Seis a nove refeições prontas (enlatados, barras energéticas, frutos secos, comida liofilizada)</div>
- <div>Talheres leves ou multiferramenta com colher</div>
- <div>Pequeno fogareiro portátil</div>
- <div>Poncho impermeável</div>
- <div>Manta térmica</div>
- <div>Saco-cama</div>
- <div>Muda de roupa interior</div>
- <div>Toalhitas</div>
- <div>Escova e pasta de dentes</div>
- <div>Álcool-gel</div>
- <div>Kit de primeiros socorros (pensos, tesoura pequena, desinfetante, analgésicos, medicação diária, creme para queimaduras e picadas)</div>
- <div>Lanterna frontal</div>
- <div>Power bank carregada</div>
- <div>Isqueiro</div>
- <div>Canivete multifunções</div>
- <div>Corda</div>
- <div>Máscara</div>
- <div>Apito de emergência</div>
- <div>Cópias de documentos</div>
- <div>Dinheiro em numerário</div>
- <div>Rádio a pilhas</div>