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No dia 18 deste mês o ministro do Ambiente publicou no JN a "memória descritiva" do caderno de encargos da nova ponte sobre o Douro, do qual se assume como "autor". Num momento raro e histórico, um ministro ilustra publicamente o seu extenso conhecimento técnico, paisagístico e arquitectónico. O único problema é que este é tão profundo como os meus conhecimentos em cirurgia cardiotorácica, em que até sei o que é um bisturi e vi uns vídeos no youtube, mas por não ter estudado medicina nem praticado essa especialidade, se eu a tentasse exercer provavelmente o paciente não sobreviveria. Vamos lá então analisar a memória descritiva do ministro em três temas que aborda: cota da ponte, perspectiva/enquadramento, tradições de pontes do Porto.
O ministro defende a cota (altura) de chegada da ponte na VL8, junto ao Arrábida Shopping, como a "inserção perfeita", quando a ponte a uma cota mais baixa pode vir pela encosta e evitar milhões de horas perdidas em engarrafamentos (e emissões de CO2) na VL8 durante as obras. Diz ainda que se a ponte fosse mais baixa "ensombraria mais as casas na encosta" do Porto, quando existem alternativas de traçado que nem sequer passam por cima de casas, mesmo cumprindo a ZEP da ponte da Arrábida. De facto, existem alternativas de traçado, melhores e mais baratas a uma cota um pouco mais baixa, que incomodariam menos os cidadãos do Porto e de Gaia durante as obras. Estas teriam uma inserção urbanística mais integrada, sem desqualificar o campus universitário do Campo Alegre. Por interesse público e bom senso, devem ser consideradas.
Em relação à perspectiva voltemos aos básicos: caso não esteja de frente o tabuleiro de uma ponte parece sempre "inclinado" e depende da altura a que esteja em relação a este (no Palácio de Cristal parece mais "plano", à cota da marginal mais "inclinado"). Em resumo: o enquadramento da ponte da Arrábida depende do ponto de vista. Não era necessário fazer uma ponte tão alta e com um vão de 430m, quando podíamos fazer uma com menos de 300m; garanto-lhe que ficará mais barata e o enquadramento da ponte da Arrábida fica garantindo na mesma. Aliás, quando muito, a ponte da Arrábida (com um vão de 270m) vai parecer uma ponte pequena ao pé da nova, exceptuando quando estiver a vir da Foz, em que a Arrábida irá parecer maior (é outra característica da perspectiva).
No que toca às "tradições de pontes do Porto" que o ministro refere, como "não colocar pilares no rio", se um dia vier de Lisboa de comboio olhe para a direita: vai ver os pilares da ponte do Freixo no rio Douro. Temos de admitir que não são os mais bonitos, mas se vier de carro pelo Freixo olhe para a esquerda e veja os orgulhosos pilares fundados no rio Douro da última obra de Edgar Cardoso: a ponte de São João. Diz a lenda que os pilares foram estudados a partir do corte de uma cenoura, pelo que se quiser emular o talento do "mestre" com uma cenoura não se esqueça: têm água na base, onde os pilares são circulares, por questões de estética, resistência dos materiais e hidrodinâmica.
Ainda no tema das "tradições de pontes do Porto", quando o presidente do Metro do Porto diz ao JN que não há pontes a chegar ao Porto em "meia encosta", gostaria de recomendar o excelso a viajar de metro na linha amarela e olhar para as Fontainhas; está ali uma ponte a meia encosta, temos de subir até ao Jardim de São Lázaro e chama-se ponte do Infante. Por acaso até pertence à Metro do Porto.
O ministro diz que quem contesta só "está a olhar para o seu umbigo"; eu queria dizer-lhe que estou mais a olhar para a minha carteira e os impostos que eu e a minha geração vamos ter de pagar nos próximos 30 anos; nem sequer participei no concurso. Tendo nascido e crescido em Coimbra, sei bem o que é uma ponte feita à pressa, chamava-se ponte Europa e custou três vezes mais. O trauma foi tão grande para a cidade que até lhe mudaram o nome: Rainha Santa Isabel. O Frank Lloyd Wright dizia que "os médicos podem enterrar os seus erros", nós não temos tanta sorte. Gostaria de não ver o mesmo acontecer na cidade que escolhi para viver, o Porto.
Sei que o ministro tem sentido de humor, e espero que não leve a mal este texto de resposta. Tenho a certeza que irá rir desta situação daqui por uns anos. No entretanto, convinha resolvermos esta embrulhada, que tem tudo para se arrastar nos tribunais e sair cara aos contribuintes, nós. Relance o concurso da ponte de forma correcta, com os contributos da sociedade e dos especialistas que recebeu nas últimas semanas. Daqui a quatro meses estaremos aqui a celebrar a solução vencedora, limpa de qualquer um dos problemas identificados.
Engenheiro Civil
O autor escreve segundo a antiga ortografia