Avenida Nun'Álvares: Porto quer resolver um impasse com mais de cem anos
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* Declaração de interesses prévia: sou proprietário de dois terrenos na futura avenida, onde vou construir uma casa e um pequeno prédio, tenho acompanhado de perto e ao longo de muitos anos o processo de licenciamento.
Poucos projetos urbanísticos em Portugal carregam um peso histórico tão marcante quanto a Avenida Nun'Álvares, no Porto. A sua conceção inicial remonta a 1916, quando A.C. da Cunha Moraes apresentou a Proposta de Melhoramentos da Cidade do Porto. Já nessa altura se falava da necessidade de um eixo estruturante que ligasse a Foz do Douro a Matosinhos, acompanhando a orla atlântica. O objetivo era simples e visionário: abrir uma avenida larga, moderna, capaz de responder ao futuro da mobilidade e do crescimento urbano
Passaram-se mais de cem anos e inúmeros planos diretores, reguladores e revisões legislativas. O traçado foi redesenhado, as intenções reafirmadas e, tantas vezes, abandonadas.
Nos últimos meses, após décadas de avanços e recuos, a CMP conseguiu finalmente desbloquear o processo. O que parecia um sonho adiado para sempre tornou-se realidade: a cidade aprovou e iniciou o caminho para a concretização deste eixo, que será ao mesmo tempo viário, residencial, ecológico e urbano.
Um impasse histórico
O percurso até aqui foi longo e sinuoso. Nos anos 1930, o engenheiro Ezequiel de Campos voltou a propor a expansão para poente.
O pós-guerra e os anos 1950 trouxeram novos planos, mas sempre a mesma conclusão: a avenida era essencial. Em 1962, o urbanista Robert Auzelle insistia numa artéria larga, de duas faixas por sentido, assegurando uma ligação rápida a Matosinhos.
Nos anos 1980 e 1990, com a revisão do Plano Diretor Municipal, a Nun'Álvares manteve-se como projeto fundamental. Mas as sucessivas revisões nunca passavam do papel. Até que, em 2012, um projeto de loteamento parecia prestes a avançar. Previa 214 mil m² de construção, uma avenida com 35 metros de largura e edifícios de 5 a 6 pisos. Porém, sem acordo dos proprietários, o processo ficou paralisado e foi arquivado.
Ponto de viragem
A verdadeira mudança ocorreu em 2021, quando o Porto aprovou a segunda revisão do Plano Diretor Municipal. Pela primeira vez, conseguiu-se um equilíbrio entre três dimensões fundamentais:
Redução da edificabilidade, com um índice global de 0,67, muito abaixo da média da cidade e de planos anteriores.
Integração com o tecido urbano existente, privilegiando moradias onde já há moradias e blocos onde já existem blocos.
Valorização ambiental, com a renaturalização das ribeiras de Nevogilde e da Ervilha e a criação de mais de cinco hectares de áreas verdes públicas.
Além disso, a Câmara introduziu flexibilidade: em vez de um único loteamento abrangendo toda a extensão, permitiu a divisão em várias unidades de execução. Essa solução abriu caminho ao consenso entre os proprietários e à viabilização prática do projeto.
Concertação fez a diferença
O atual Executivo Municipal, liderado pelo vereador Pedro Baganha na área do Urbanismo, assumiu uma estratégia clara: concertar posições entre todos os proprietários. Cada um recebeu direitos edificatórios proporcionais, distribuídos de forma transparente e objetiva, ao abrigo do Regulamento Perequativo de Edificabilidade e Encargos Urbanísticos.
O resultado foi um contrato de urbanização assinado por todos proprietários, algo inédito na longa história da Nun"Álvares. Foi esse consenso que finalmente desbloqueou o projeto. Pela primeira vez, a avenida deixou de ser apenas uma intenção nos planos e passou a ter um quadro legal, técnico e político sólido.
Mudanças estratégicas
Em comparação com o plano arquivado, as diferenças são significativas:
A largura da avenida diminuiu de 35 para 23 metros, evitando a sensação de "fosso" urbano e reduzindo custos em um terço.
A área de construção passou de 214 mil para 176 mil m², e o número de fogos caiu de 2.572 para 1.665.
A altura média dos edifícios baixou de 5-6 pisos para 3-4 pisos.
A exceção são três lotes junto à Praça do Império, que se situa numa zona ladeada por dois grandes conjuntos de três edifícios e onde se poderão construir e ficaram previstos os novos edifícios até a um máximo de 25 pisos. Estes, permitem libertar mais solo para áreas verdes, sem aumentar a área total de construção.
O metro foi excluído do traçado, após estudos demonstrarem os impactos negativos no Parque da Cidade e nas ribeiras.
Estas alterações, aprovadas sem nenhum voto contra em reunião de Câmara e Assembleia Municipal, representam a solução mais equilibrada e adaptada à realidade do Porto contemporâneo.
Polémica das "torres"
É impossível ignorar a controvérsia recente em torno das três "torres" de 25 pisos. Críticas apontam riscos de impacto visual e descaracterização da Foz. Mas a Câmara sublinha: os metros quadrados seriam os mesmos, com torres altas ou vários blocos baixos. A diferença está no solo libertado para parques e ribeiras.
Além disso, os projetos apresentados - assinados pelo arquiteto Norman Foster - incluem estudos de insolação, impacto de sombra, ventos e enquadramento paisagístico. As alturas reais previstas são de 78, 83 e 86 metros, muito abaixo dos 100 metros que circularam em imagens falsas e manipuladas nas redes sociais.
A polémica também reflete o contexto pré-eleitoral, com debates alimentados por populismo e desinformação. O município veio a publico garantir que o processo foi transparente, participado e escrutinado em assembleias e discussões públicas.
Avenida para o século XXI
A futura Avenida Nun'Álvares não será apenas uma estrada. Será um eixo urbano estruturante que integra:
Mobilidade: ligação direta entre a Boavista e a Praça do Império, facilitando o acesso à Foz.
Habitação: tipologias diversificadas, de moradias a blocos, respondendo às dinâmicas residenciais da cidade.
Ambiente: dois grandes parques urbanos associados às ribeiras, com 20% da área total destinada a espaços verdes.
Coesão urbana: uma avenida que une, em vez de separar, costurando a malha da Foz e de Nevogilde.
Mais do que resolver um impasse centenário, a Nun"Álvares representa uma nova forma de pensar a cidade: sustentável, integrada e participada.
A história da Avenida Nun"Álvares é também a história da resiliência do planeamento urbano português. Durante mais de cem anos, gerações de arquitetos, engenheiros e políticos defenderam a sua concretização. Foram necessárias décadas de debates, revisões de planos e impasses jurídicos para que se chegasse a este ponto.
Hoje, o Porto está perto de concluir este tão importante marco, numa cidade que precisa de rejuvenescer e crescer. Através de consenso, rigor técnico e transparência política, a cidade transformou um sonho adiado numa realidade palpável.
A Avenida Nun'Álvares será, assim, mais do que uma obra viária: será um símbolo da capacidade de resolver bloqueios históricos e de projetar a cidade para o futuro. Um exemplo de como o urbanismo pode unir memória e modernidade, história e inovação, e de como o Porto continua a saber reinventar-se sem esquecer as suas raízes.