A casa de Alves da Veiga era um corrupio permanente. Sendo a Avó Manuela a fada madrinha dos Machados, todos se sentiam no direito de arribar ao Porto, bater ao ferrolho e instalar-se. Era tão doce... E surda, escutava-nos com a alma.
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Eu chegava e a merenda já sorria, maizena simples, com chocolate para os meus primos, conseguia amar os três e fazer cada um sentir-se especial. A novela do Tide. Berrávamos-lhe ao ouvido os amores entre uma rapariga pobre e um menino rico, a luta de classes cedia à paixão que os unia. Quando morreu, seria obsceno manter a alegre ceia natalícia da família alargada. Minha Mãe, respeitando o desgosto do marido, fingia que o calendário perdera duas datas.
Meu Avô Ângelo já partira. O envelhecer traz uma lucidez melancólica, nunca fomos próximos. E no entanto, a única recordação de Alves da Veiga que habita a minha casa é a sua escrivaninha. Ao fim da tarde ia chamá-lo para jantar e via-o escrever, de pé, emoldurado pela inconfundível luz tripeira, de uma beleza tão frágil que ilumina sem tocar.
Minha Avó Sorgue vivia connosco e era uma força da natureza, meu Pai chamava-lhe a Rainha Mãe. Dormíamos no mesmo quarto e ela brindava-me amiúde com minuciosa descrição do dia em que o Avô Guilherme morrera num eléctrico da capital, sem aviso ou remédio. (Remédio não tinha eu para as suas lágrimas, o tempo não enferrujara a saudade.) Nesse D. Sebastião, que recusou todas as manhãs de nevoeiro, projetei eu a nostalgia do que nunca vivera com o Avô Ângelo.
A Avó casara segunda vez e minha Mãe alugou a pequena vivenda em São Mamede Infesta. O Paulitos era um homem meigo, que acreditava no triunfo do esperanto e da anarquia solidária que não exige Governo. Mas a Avó Sorgue não vivia com ele, visitava-o e regressava a nossa casa. Um dia, cansado, ele agradeceu tudo a meus Pais e perguntou se nos podia ver em Lisboa. Para escândalo ciumento de minha Avó, nunca perdi uma oportunidade - na mesa de um qualquer café, ele iniciava-me nos mistérios das palavras cruzadas; era o meu Avô.
Por razões profissionais, fui o mais ausente dos Avós durante a infância dos netos, busquei-lhes perdão e companhia na adolescência. A primeira vez que viajámos "a solo" parti com o credo na boca e regressei com um sorriso nos lábios. Tratam-me por Julinho e os diminutivos são ternurentos, mesmo no dialecto da restauração matosinhense, "o peixinho do costume, senhor doutor?". Um deles, mal o Porto foi campeão, telefonou, aperreador. Despedi-me com um "obrigado por falares" que o surpreendeu, afinal fizera-o para salgar a ferida. Disse-lhe que era bom ouvi-lo em qualquer circunstância.
Ele entendeu. Acho que ainda me concedem o gozo de ser Avô.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
Médico