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Enroscado na carinhosa hospitalidade da Herdade do Sobroso espero o Zé. Ele e a tribo adoptaram-me desde a primeira visita à Taberna das Quartas-Feiras em Évora. Trata-me por menino e exige a minha presença duas vezes por ano, tenho um quarto não merecido no seu coração.
Deixo o olhar espraiar-se por memórias e horizonte. Há muitos anos, dois homens disseram-me que amavam o Alentejo por lhes fazer lembrar África e a liberdade dos grandes espaços. Acho que consigo imaginar o que sentiam. Afinal vivemos empilhados, janelas com janelas, mas com discursos reveladores - "dez anos naquele prédio e não fiz um amigo, só nos cumprimentávamos no elevador". Deve ser difícil sentir o olhar censurado na nostalgia de se perder no horizonte.
No meu trabalho o espaço ocupa um lugar privilegiado, tenho a obrigação de alertar os alunos para o seu ordenamento; a Saúde, pelo menos em Antropologia Médica, exige a presença de especialistas que dispensam a bata branca. Mas não o lápis que gera o esquisso, por exemplo! A distribuição dos espaços verdes, o isolamento térmico e sonoro das habitações, a simples (?) forma dos edifícios são variáveis que influenciam o nosso bem-estar psicológico e reduzem ou aumentam o famigerado stress.
Mas também como terapeuta lido com questões de espaço e distância, sobretudo no contexto das relações. Alguém precisa de mais espaço físico e psicológico e o outro lê tal reivindicação como prova de menos amor, balançamos entre a opressiva claustrofobia e o desamparado abandono. Escrevi um dia que a vida era a arte da distância e a psiquiatria também. Continuo a pensá-lo, mas embora o amor - ou a sua morte - faça parte da vida, devia tê-lo autonomizado. Há décadas que vejo pessoas separarem-se; gostando uma da outra, mas incapazes de encontrar a boa distância na relação.
(Às vezes também sofremos por não encontrarmos o equilíbrio entre o que sonhámos e fizemos ou entre o que somos e mostramos ao Mundo.)
Deus permanece silencioso, a experiência gerou mais perguntas do que respostas, para onde me virar? Estou no Alentejo, Vitorino sussurra-me ao ouvido: "perguntei ao vento..."; Dylan mete-se ao barulho e reforça a mensagem: "a resposta, meu amigo, vai soprando no vento". Apuro o ouvido. Nada. Suspiro e Manuel Alegre: "o vento nada me diz".
O miúdo que ria a bandeiras despregadas na piscina de repente silencioso; quase solene. O vento fala com ele, arquitecto do novo mundo, tentei instalar um ou outro alicerce para a sua obra. Que desejo bela; justa; solidária.
O Zé chega. Ramos Rosa: "para um amigo tenho sempre...". Dois sorrisos em abraço apertado. "Olá, menino...". O espaço infinito da amizade à distância de uma troca meiga de palavras.
*Psiquiatra
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)