Fogos rurais: o que deveria ter sido feito desde há 75 anos e ainda não foi
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Portugal está em 2.º lugar, a nível mundial, depois do Uruguai, na percentagem de área florestal privada não comunitária: 92,1%, sendo o resto 5% de baldios e 2,9% de área pública (FAO, Global Forest Resources Assessment 2020). Muita desta área está fragmentada em pequenas propriedades divididas em parcelas, muitas vezes não contíguas e não cadastradas.
Houve um tempo em que, com esta estrutura fundiária, e sem incentivos públicos para os privados, a área florestal cresceu muito. Entre 1867 e meados do século XX essa área no continente passou de 1,24 para 2,83 milhões de hectares, graças à expansão do sobreiro e do pinheiro-bravo. O sobreiro está implantado em regiões de grande propriedade. Não é o caso do pinheiro-bravo, mas aqui predominava uma pequena agricultura complementar dos usos dos espaços florestais, o que permitia que esta espécie se pudesse expandir quase sem custos para os proprietários, incluindo os da gestão de combustíveis minimizadora do risco de fogos rurais.
Esta situação alterou-se a partir de meados do século XX. A população rural e o emprego agrícola e florestal entraram em declínio acentuado (ver figura). O recuo da agricultura, o aumento da área de matos não geridos por uma pecuária extensiva também em declínio, a quebra das complementaridades entre as atividades agropecuárias e os usos dos espaços florestais, em parte decorrente da mecanização e da substituição da fertilização orgânica pela fertilização química, fizeram com que fossem aumentando para os proprietários florestais os custos de uma gestão minimizadora do risco de fogos rurais.
Assim sendo, o que deveria ter acontecido desde meados do século XX era ter-se colocado no centro da política florestal fortes incentivos para a gestão agrupada da floresta privada. O que tem acontecido é o contrário. No país com a 2.ª percentagem mais alta de área florestal privada, a política florestal olha para esta floresta como se fosse pública, ao privilegiar instrumentos de comando e controlo, ou seja, é o centralismo que tem estado no cerne da política florestal. Os incentivos aqui preconizados seriam a aplicação na produção de um bem público (associativismo) de parte do valor doutro bem público (serviços ambientais florestais) pelo qual os produtores florestais não são pagos, valor este que corresponde a cerca de metade do valor económico total dos espaços florestais (Américo Mendes et al, ECOFOR.PT, 2021).
Os incentivos para a floresta privada que tem havido têm sido mal desenhados no que se refere à necessidade da gestão agrupada. Na sua grande maioria visam os produtores florestais considerados de forma individual. Quando visam a gestão agrupada vêm com erros que não permitem longa vida a essa gestão, como foi o caso das Zonas de Intervenção Florestal onde se apoia a sua criação, mas não se apoia o seu funcionamento.
Estes erros resultam de fatores muito enraizados na cultura dos agentes do sector florestal. Nos Serviços Florestais e na educação para a profissão de Engenharia Florestal há fortes marcas das suas origens "prussianas" onde gerir um espaço florestal é essencialmente gerir árvores e não gerir pessoas para o que medidas técnicas e de comando e controlo parecem bastar. Nos agentes políticos predomina o centralismo. Nos agentes privados há uma grande heterogeneidade socioeconómica geradora de uma cultura não propensa à ação coletiva. Urge, pois, uma mudança cultural que rompa com estes bloqueios para proteger a floresta que precisamos muito de ter.
Como o gráfico mostra, o emprego da nossa agricultura e florestas sofreu um declínio relativo após 1900 e um declínio absoluto após 1950. Por isso, desde meados do século XX, para adaptar a gestão da floresta privada a estas transformações, a política florestal deveria ter dado fortes incentivos à sua gestão agrupada, principalmente no minifúndio. O centralismo não o permitiu fazer.