Jornalismo livre para se informar
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Durante o ano de 2022, a Comissão de Acesso aos Documentos da Administração (CADA) recebeu 56 queixas de jornalistas, porque diversas entidades públicas lhes negaram um dos seus mais básicos direitos, constitucionalmente garantido: o direito à informação. A todas as queixas de jornalistas feitas durante o ano passado a Comissão deu razão, o que torna evidente a falta de cultura democrática e a impunidade dentro da administração pública, e a ignorância de quem decide, até aos mais altos níveis, impedir o acesso a documentos sem qualquer justificação aceitável.
Não foi sem luta que a administração pública cedeu a maior parte destes documentos. A alguns pedidos, muitas entidades nem sequer responderam à CADA, como se a Comissão não existisse ou o Código do Procedimento Administrativo fosse letra morta. A outros tentaram o estafado argumento da Protecção de Dados, como se alguma lei pudesse servir para esconder o que é obrigatoriamente público. A outros disseram ainda que não são obrigados a produzir novos documentos para satisfazer pedidos, como se rasurar ou apagar dados pessoais de um documento existente possa ser considerado como a produção de um novo documento.
Não por acaso, assistimos nos últimos meses a uma enorme quantidade de processos judiciais entrados nos Tribunais Administrativos contra entidades públicas, exactamente por denegação de informação, mesmo após pareceres favoráveis da CADA. Muitos deles foram intentados (e já ganhos) pelo Jornal de Notícias e pelo jornal Página Um, mas assistimos também a alguns anunciados por outros órgãos de comunicação. É o caso do jornal Expresso, que viu negado o acesso aos salários do seleccionador nacional de futebol e da sua equipa técnica; ou do Correio da Manhã, que ainda aguarda a lista completa das pensões vitalícias a políticos.
Se podemos regozijar-nos no dia de hoje, agradeçamos aos juízes do Tribunal Administrativo de Lisboa que, nos últimos meses, têm sido garantes de um Estado de Direito que parece estar a escapar-nos por entre os dedos. Até este momento, somam condenações o Ministério das Finanças, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, a Ordem dos Médicos, e até o Conselho Superior de Magistratura, que teima em recusar, a um jornalista, acesso a um documento que já foi obrigado a entregar a um particular.
Quarenta e oito anos de ditadura instalaram em Portugal uma visão do poder que os últimos quarenta e nove ainda não conseguiram apagar. A administração pública portuguesa continua dominada por políticas obscurantistas e muito pouco democráticas, que fazem gáudio em ignorar o princípio da administração aberta, constitucionalmente consagrado. Quem exerce funções públicas, a nível nacional ou autárquico, parece mais interessado em esconder informação dos media, mesmo que para tal seja necessário gastar muito dinheiro público em longos processos judiciais que têm um único objectivo: lutar contra a transparência.
Na plataforma Artigo 37, criada para registar casos de restrições à liberdade de imprensa em Portugal, temos vindo a contabilizar muitos destes casos de impedimento de acesso aos documentos administrativos, mas temos noção de que o trabalho está apenas no início e há muitas, mas muitas, falhas que é preciso colmatar. É preciso que cada vez mais jornalistas tenham conhecimento de que este recurso existe e que pode e deve ser usado, é preciso ter mais colaboração por parte dos jornalistas no reporte dos casos em que estão envolvidos, é preciso falar mais dos inúmeros comportamentos ilegais que obstaculizam a profissão de jornalista.
Quando criámos a plataforma, dissemos que ela visava cumprir o artigo 3º do nosso código deontológico, que defende que "o jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar". E acrescenta: "É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos". Acreditamos que, aos poucos, os jornalistas perceberão a importância de tornar públicas estas ofensas e as vantagens de aumentar a transparência dos seus processos de trabalho e das dificuldades que enfrentam. A democracia agradecerá.
Numa semana em que Portugal desceu dois lugares no ranking da Liberdade de Imprensa, fazemos um apelo para que as nossas instituições - da Presidência da República à Provedoria de Justiça, passando pela Assembleia da República - possam ajudar-nos a transformar a administração pública portuguesa num lugar mais inteiro e limpo, que honre verdadeiramente as promessas de Abril. Se precisam de sugestões, podem começar por obrigar as entidades públicas a nomear um encarregado do acesso à informação, como a lei determina há muitos anos. Ou obrigar os tribunais a publicar todas as sentenças, cumprindo as recomendações do Group of States Against Corruption - Greco, um simples contributo que é reclamado há muitos anos e não é difícil de executar, garantindo, como é óbvio, os diretos mais básicos dos envolvidos.
Os autores escrevem segundo a antiga ortografia.
* artigo37.pt