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São estranhos os dias que passam até às eleições para os órgãos sociais do Futebol Clube do Porto. Se por um lado a democracia está a funcionar, o certo é que o caminho para a decisão marcada para o final de abril leva a momentos que andam entre o penoso e o confrangedor. A erosão autodestrutiva de valor e as consequências trágicas da perpetuação de um longuíssimo poder encontram aqui um autêntico tratado.
Jorge Nuno Pinto da Costa, o presidente-candidato, disse há dias ser “preciso um 25 de abril no futebol português”. Sendo o objetivo em si mesmo válido, não deixa de ser irónico que o autor da frase seja alguém que está há mais de 40 anos consecutivos no poder.
Aliás, a sua concepção de eleições democráticas ficou registada em discurso direto, em recente entrevista à SIC: "Vou fazer 42 anos de presidência. A grande vitória, a nossa base, foi a união dos sócios. Desde que apareceu esta candidatura (a de Villas-Boas), não tem feito mais nada senão tentar dividir os sócios.”
Ou seja, para Pinto da Costa as eleições são espectaculares se não houver adversários. Ou então, caso existam adversários, desde que concordem com ele e não dividam opiniões (nem o voto dos sócios, claro).
Seria impensável ver no “presidente dos presidentes” uma representação, perfeita e por isso cruel, de um ditador em declínio. Durante décadas poderoso, adulado e muito mas muito temido, é triste perceber que este fim de ciclo não é muito diferente dos de um Salazar, um Franco ou um Mobutu. Quando a solidão do poder do líder é agravada pela acentuada degradação moral à sua volta.
Estando as eleições no FC Porto marcadas para 27, o 25 de abril pode mesmo chegar ao futebol dias depois. Com 50 anos de atraso e caso o único clube português que ainda permanece no “antigo regime” - leia-se falta de transparência nas contas, falta de credibilidade institucional, acumulação de passivos, negócios duvidosos, excessos de poder, agressões e perseguições a jornalistas e a opositores, falta de educação e manutenção da “guarda pretoriana” - conseguir virar a página de 15 mandatos ininterruptos (e muito vitoriosos, diga-se), entrando na era moderna, decente e profissional. Se os sócios quiserem, o 25 de abril pode realmente acontecer a 27.
Com o aproximar desse possível e desejado “dia inicial inteiro e limpo”, são de pasmar as últimas posições de um homem que, sendo culto, instruído e em tempos dotado de um sarcasmo mordaz, agora parece querer a todo o custo que o recordemos como presidente do “Casca-grossa Futebol Clube”.
O teor das ofensas gratuitas à família de uma lenda como José Maria Pedroto ou os insultos à Imprensa estão para lá do nível de “reality show” de segunda categoria. Não surpreendem, mas continuam a chocar.
O que é ainda mais degradante quando é público que Pedroto foi um decisivo aliado de Pinto da Costa no “golpe de Estado” interno – com episódios de motins, ameaças, fugas e raptos de jogadores -, que, no início dos anos 1980, conduziu ao afastamento de Américo de Sá e à ascensão de Jorge Nuno ao poder.
Voltando ao presente, o FC Porto tem tido dissabores competitivos pesados e presta-se a espectáculos de enorme descontrolo emocional, para ser simpático. Independentemente do
resultado, parece não haver jogo que não acabe em distribuição de impropérios, empurrões e confusões. Apesar das dificuldades do momento, não há dúvidas da capacidade inspiradora da liderança. Os exemplos, também os maus, vêm mesmo de cima.
O FC Porto é em primeiro lugar vítima de si próprio, da sua direção e da sua conduta. Como cortina de fumo, pode queixar-se de árbitros, adversários e reguladores. E poderá até queixar-se mais do que noutras épocas. Mas a questão não está aí. O que os sócios e adeptos percebem é que o FC Porto não é respeitado. E não o é pela simples razão de que ninguém respeita quem não se dá ao respeito.
À falta de respeito próprio somam-se a aplicação da Lei de Murphy e o velho e péssimo hábito português de “bater” em quem está em baixo. Mas os problemas, sublinhe-se, já estavam lá. Eram conhecidos, prévios e bem anteriores aos últimos meses, nos quais as fragilidades ficaram mais expostas à evidência.
André Villas-Boas teve e tem a enorme coragem e o imenso mérito de acordar as forças vivas do clube, que são os seus sócios, e a comunidade para o estado, a vários níveis crítico, a que o FC Porto chegou. Ganhe, como espero, ou perca, Villas-Boas já prestou um inestimável serviço à verdade, à transparência e à civilidade. E teria sido sempre mais fácil e confortável ser indiferente ou ficar alheado.
É uma organização inteira, toda uma estrutura fortemente hierarquizada, em preocupante instabilidade e incerteza. O que se reflete com perfeição e nitidez quanto se olha para o campo de jogo e se constata o aumentar da frequência e da intensidade dos comportamentos irascíveis do treinador. Sérgio Conceição, em casa dele e nos jogos de juvenis dos filhos, pode dizer os palavrões e fazer as figuras que quiser. É pena, mas é com ele. Já como líder de uma equipa de futebol que arrasta dezenas de milhar de adeptos, parte deles crianças e jovens, tem a obrigação de ser responsável e mostrar boas maneiras. Nem sequer se pede que faça pedagogia, apenas que haja mínimos.
Se ganhar as eleições, André Villas-Boas saberá o que fazer e fará o que melhor entender. Por mim, mesmo que isso significasse ganhar com menos golos, preferiria ver o meu clube com outra atitude e sentir-me representando com dignidade, desportivismo e classe.
O que é difícil quando é o próprio presidente a afirmar, sem se rir e sobre as agressões institucionalizadas na assembleia-geral de 13 de novembro, que “ninguém recebeu tratamento no pavilhão, nem foi ao hospital, nem ficou ferido. Naturalmente, se levar um estalo, é desagradável… Ninguém gosta…”. O Ministério Público entende que o “desagradável” pode ser sinónimo de conduta criminosa e previamente orquestrada. Quem lá esteve, assistiu ou sofreu na pele a intimidação e a violência promovidas por um grupelho ululante de perigosos alienados não ficou com dúvidas.
Preocupante e confrangedor: a invocação deste FC Porto, sinónimo presente de más práticas e de péssimas condutas, enquanto símbolo da cidade e porta-voz “político” de uma região. Felizmente, a cidade tem um presidente de Câmara chamado Rui Moreira, um Conselheiro de Estado como António Lobo Xavier e um Ministro de Estado e dos Estrangeiros que é Paulo Rangel. Limito-me a citar insignes portuenses em cargos representativos, sendo que há muitíssimas outras personalidades respeitáveis e admiradas, com reconhecimento externo, que não se revêm nestas confusões. A maioria dos cidadãos do Porto é capaz de usar de sensibilidade e bom senso para distinguir o que não deve ser misturado.
Até pela dimensão que ultrapassa as fronteiras do Norte e o espaço do país, ser portuense não é igual a ser portista, nem vice-versa. A mistura deliberada de realidades autónomas é abusiva e representa mais um sinal da desorientação própria de um fim de festa e de regime.
Resta-nos humildemente esperar que o impressionante paralelismo com a decadência de lideranças históricas não remeta uma instituição de serviço público tão relevante como o FC Porto para o grande incêndio de Roma, que destruiu a cidade enquanto o imperador Nero tocava harpa. Mas Roma, é público, é Eterna.