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Depois de uma gravidez tranquila e uma infância até aos três anos sem qualquer problema de saúde, já não equacionávamos que a vida normal da nossa filha pudesse ser posta em causa por uma qualquer patologia clínica. Quando uma amigdalite e um torcicolo surgem por três vezes seguidas e em simultâneo, não é possível acreditar na coincidência e começamos a pôr em causa os diagnósticos simplistas e as respostas da ciência.
O caos instalou-se nas nossas vidas em setembro de 2021, quando, pela primeira vez, nos deslocámos com a pequena a um serviço de urgência e onde foi necessário colocar um cateter, um tratamento a soro, antibióticos, anti-inflamatórios, análises, uma TAC e uma radiografia para uma recuperação que se veio a verificar efémera. A angústia foi tal que pensámos não aguentar muito mais do que aquilo. Estávamos muito longe de adivinhar os dias de internamento, testes e exames médicos, e a dificuldade que iríamos enfrentar em encontrar o tratamento certo para ter a nossa pequena saudável. Aguentamos e continuamos a aguentar.
Depois de percebermos a incapacidade dos hospitais privados para darem resposta às nossas ânsias, foi no Hospital Dona Estefânia e no incrível Serviço Nacional de Saúde que encontramos um lado humano e preocupado que, apesar da incerteza, nos trouxe alguma paz.
Recordo a primeira consulta depois de se assumir a gravidade da situação. Perante nós e a nossa filha, estava presente uma equipa multidisciplinar de várias especialidades que discutia hipóteses de diagnóstico e que decidiu pelo internamento. Um internamento longo, de quase um mês, que não permitiu descobrir a patologia, mas onde sentimos que estavam a fazer todos os possíveis e a usar todos os recursos para o fazer, e de onde saímos com a certeza de que no caso de uma nova crise, saberíamos dar resposta e que a Estefânia seria o nosso porto de abrigo.
A dúvida sobre o diagnóstico e de não existir um tratamento completamente adequado traz uma constante dúvida e desassossego. Quando haverá novas crises? Será que é mais grave ainda? Haverá novas manifestações? Quais serão essas novas manifestações? Até quando isto pode acontecer? Trará consequências a médio e longo prazo? Poderá ser mais incapacitante ou mortal? Será adequada e que consequências trará a medicação?
E depois do resultado de um novo exame, surge uma nova incerteza. E depois de um diagnóstico precoce surge a contradição desse diagnóstico. E depois de uma melhoria momentânea, surge a recaída.
As febres altas, as amigdalites, as artrites, a diarreia, as dores de estômago, as inflamações e queixas de dores seriam mais fáceis de suportar se não se apresentassem num looping interminável que nunca sabemos quando vão regressar, mas sabemos que vão e essa é a grande diferença para com as patologias diagnosticadas. É muito difícil de gerir este carrossel de emoções e a ansiedade em saber que aqueles momentos bons em que a menina está saudável vão ter um fim.
Tudo isto seria bem mais fácil de suportar se existisse um diagnóstico e um caminho que nos garantisse a normalidade e qualidade de vida da nossa filha e esse é o maior problema de todos os que enfrentamos neste quase ano e meio: a incerteza. A normalidade com que identifica numa escala de dor a sua queixa, como levanta a manga da camisola para tirar sangue ou entra numa máquina de TAC a sorrir, é a normalidade na doença que não desejamos para ninguém.
A internet e o conhecimento não filtrado são péssimos companheiros nesta cruzada e a maioria de amigos e familiares também não ajudam. Se os primeiros tendem a sobrevalorizar a doença, os segundos não a entendem e tendem a minimizá-la.
É por isso que a associação «Ser Raro» tem um papel essencial. As comunidades de pessoas que passam ou passaram por esta situação são essenciais para encontrar conforto. É incomparavelmente mais tranquilizante saber que vai ficar tudo bem e nos vamos habituar a este novo normal quando são essas pessoas a dizê-lo. É apaziguante saber que se elas encontraram a força para isso, nós também o conseguiríamos fazer.
Para além da força emocional e física, precisamos de tempo e disponibilidade. São essenciais para ir às consultas, aos exames, às urgências, à escola e para estarmos presentes nos dias de doença. Para isso, torna-se essencial as entidades patronais serem sensíveis à situação e permitirem uma maior flexibilidade horária no cumprimento das responsabilidades profissionais. É uma gestão hercúlea onde apoio familiar é essencial e o psicológico quase indispensável.
Quase um ano e meio depois, estamos mais fortes e confiantes e o estudo genético permitiu já excluir algumas patologias. Esperamos que o painel familiar traga mais certezas e um nome para esta maldita condição, assim como a certeza do seu fim na idade adulta!
*pai de uma menina que está em processo de diagnóstico de uma doença rara (SERaro)
A SERaro é uma associação de apoio a pessoas com doenças raras e a CBR Genomics é uma startup portuguesa de testes genéticos especializada em diagnósticos difíceis.