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A política privada de pensamento, dizia Hannah Arendt, é a condição de possibilidade da destruição do nosso mundo comum. O pensamento é aqui entendido num sentido amplo que transcende o tipo de avaliações técnicas ou instrumentais a que nos dedicamos no quotidiano. Recusamos pensar, neste sentido, quando nos barricamos nas nossas pequenas esferas de entendimento, encurralando-nos nos confins dos nossos próprios medos e ressentimentos, desistindo do outro. Uma política assim, é claro, já não é política. Abdicou da busca pelo comum, do esforço de tornar visível o que ainda não é reconhecido como objeto de preocupação coletiva, e dedicou-se ao culto do familiar - do "mortalmente" familiar, como diria Audre Lorde.
Com toda a probabilidade, os palestinianos em Gaza, na Cisjordânia e na diáspora vivem na crença de que os povos do mundo ocidental deixaram de pensar. Estarão largamente certos. À data em que escrevo, assinala-se o 705º dia do genocídio em Gaza e a dita "comunidade internacional" continua sem tomar medidas contundentes para travar o estado de Israel. As dezenas de milhares de pessoas massacradas pelas forças de ocupação em território palestiniano - pessoas com histórias, famílias, aspirações, tiques, defeitos, rancores e virtudes - não impressionam os nossos líderes "políticos" e aqueles que os apoiam. Sabem o que é soberania, sabem o que é proteção, sabem até o que é empatia, mas estendem-nas a um grupo cada vez mais restrito de pessoas. Recusam pensar.
No meio deste descalabro político, que é também uma derrocada moral, há quem resista a indecência do princípio colonial de humanidade seletiva que carateriza a ordem liberal ocidental. No Reino Unido, o coletivo Palestine Action, que emprega táticas de ação direta contra a indústria de armamento britânico-israelita, foi criminalizado sob uma ordem de proibição sem precedentes que elevou o grupo a uma lista de organizações terroristas, condenando os ativistas e qualquer pessoa que expresse apoio às suas ações a penas de prisão até 14 anos. Que, desde então, mais de 900 cidadãos britânicos - entre eles, pessoas idosas e familiares de sobreviventes do Holocausto - tenham sido detidos em manifestações solidárias com o grupo prova a existência de uma verdadeira comunidade internacional, de gente que resiste o caminho da negação, que persiste na vida comum.
No dia 31 de agosto, a Global Sumud Flotilla partiu numa missão humanitária com o objetivo central de desafiar o bloqueio ilegal a Gaza imposto pela ocupação israelita. A frota marítima apresenta-se como um movimento internacional de resistência não-violenta que convoca a sociedade civil a agir em solidariedade com o povo palestiniano perante a inação e cumplicidade dos seus governos. Os seus barcos transportam bens de primeira necessidade, tais como alimentos e medicamentos, e uma mensagem de solidariedade internacional: o mundo não vai desistir da Palestina. Os riscos desta missão são bem conhecidos e ilustrados pelos ataques dos últimos dias a duas embarcações da flotilha, uma das quais acolhe os três portugueses que integram a tripulação.
Apesar disso, na vertigem das redes sociais, abundam comentários odiosos, acusações infundadas, sugestões de que os ativistas da flotilha vão de férias, em busca de protagonismo, movidos por interesses pessoais e desígnios políticos obscuros. Em Portugal, esse tipo de narrativa - incoerente, mas incendiária - encontra respaldo no discurso público de um conjunto de comentadores - minoritário, mas voraz - que se mantém investido numa defesa fanática das ações do estado de Israel, alheio à realidade e em negação das motivações genocidas explicitamente defendidas pelos líderes sionistas.
Neste contexto, assistimos às declarações inflamadas de Mário Amorim Lopes, deputado da Iniciativa Liberal, que afirmou que "o cruzeiro de ativistas (...) teve tempo de fazer uma paragem em Ibiza, ir para a noite de Ibiza e estar em diversão". Pouco importa que esta história mirabolante não tenha qualquer correspondência com a realidade - a mentira foi rapidamente condensada num clip de segundos que fez livremente o seu caminho pelas redes sociais.
Por sua vez, Henrique Pereira dos Santos escreve que "a flotilha não tem nenhuma relação com ajuda humanitária" porque "não existe nenhum bloqueio a Gaza que impeça a ajuda humanitária de entrar". Garante-nos que a Gaza Humanitarian Foundation - o modelo militarizado de distribuição de comida apoiado pelos EUA e Israel - cumpre adequadamente o propósito de distribuir milhões de refeições diárias à população de Gaza, uma informação que, pasme-se, só é confirmada pela própria GHF.
Já Ana Cristina Leonardo, que partilhou uma narração jocosa da partida da flotilha num artigo de opinião no Jornal Público, comenta um dos recentes ataques de drones à flotilha na sua página (pública) de Facebook deste modo: "Quem é que na flotilha andou a brincar com fósforos? Vá... Quem foi?".
Quem foi que perdeu qualquer noção de bom-senso? Estes comentadores mentem, é claro. Pouco lhes importa que dezenas de milhares de pessoas estejam neste momento a passar fome em Gaza, situação que se agravou drasticamente desde a restrição do acesso da ONU e outras organizações humanitárias ao território. Nada lhes interessa que os pontos de distribuição de comida pela GHF se tenham transformado em armadilhas mortais para a população de Gaza, que é aí sistematicamente sujeita a fogo direto e bombardeamentos aéreos pelas forças israelitas. Insistem na narrativa da autodefesa que os líderes israelitas e o seu exército há muito abandonaram. De facto, as motivações sionistas são hoje explícitas e declaradas: destruição e anexação de Gaza, limpeza étnica do povo palestiniano, criação da Grande Israel.
Mas os comentadores fazem mais do que mentir. Recusam o pensamento amplo defendido por Arendt, praticado pelos internacionalistas a bordo da flotilha, pelos ativistas detidos no Reino Unido, pelos estivadores italianos que prometeram bloquear a Europa em nome de Gaza, pelo movimento estudantil, pelo movimento de boicote, desinvestimento e sanções (BDS), pelos ativistas que viajam para a Cisjordânia para oferecer proteção aos agricultores durante a apanha da azeitona, pelos médicos que afluem a Gaza em pleno genocídio.
Recusam pensar e, por isso, recusam ver o mundo em toda a sua riqueza e possibilidade. Reservam para si e para os seus o direito a uma vida digna, praticando aquilo a que Naomi Klein chamou "mentalidade do bunker", procurando privar os outros, os diferentes, do direito ao futuro e à história.
É verdade que a flotilha não é só uma missão humanitária. É mesmo, como Pereira dos Santos procura "denunciar", uma missão política. Uma missão que devolve a política ao seu sentido mais amplo, que retoma uma orientação internacionalista e, por isso, nos reconduz a um mundo comum. Que essa missão possa chegar a bom porto é o mínimo que, neste momento histórico, podemos desejar.