Sem-abrigo e outras pessoas em situação de vulnerabilidade criam companhia "Do lado de fora". Representam as próprias histórias e são fonte de inspiração.
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Foi a representação, como atividade ocupacional, que os uniu, na busca pela desejada integração social. Mas findo o projeto, no Porto, a relação manteve-se e decidiram criar a sua própria companhia de teatro. Assim nasceu a "Do lado de fora", com pessoas que, na sua maioria, estão em situação de sem-abrigo e de exclusão social, e que levam para o palco histórias de vida retratadas pelos próprios.
Depois de amanhã, a peça "É!" sobe ao palco improvisado do café "Chá com Afetos", da Betel, instituição que ajuda a refazer vidas, nomeadamente de dependentes de álcool, drogas e de sem-abrigo, com a intenção de que o espetáculo sirva de "inspiração".
Os ensaios, sob direção artística de Rui Spranger, acontecem todas as semanas às terças-feiras, entre as 15 e as 17 horas, na Casa das Artes do Bonfim, cedida pela Junta. Emílio Costa, 60 anos - "a estrela da companhia", como é apelidado, em jeito de graça, pelos colegas -, é dos primeiros a chegar. Mas Emílio rejeita o protagonismo.
"Isto que aqui está é uma família, onde todos somos estrelas da companhia", diz, sem rodeios, logo interrompido por uma salva de palmas do resto do grupo.
Emílio, que sonha com o dia em que "possa ir atuar ao Coliseu", conta que no palco assume um papel "que é real" e, por isso, emociona-se ao recordar a sua história: "De um menino que morava num bairro pobre, que fez a quarta classe, e que muito cedo começou a roubar e a traficar".
Também a "personagem" de Ana Silva, 44 anos, é descrita na primeira pessoa, tendo "sofrido de violência doméstica". "Após o primeiro episódio de violência doméstica, depois de muita violência psicológica, esta mulher recorreu aos pais que não a apoiaram, apresentou queixa na GNR, que não fez nada, até que ligou para o número 144 a pedir ajuda".
Ana confessa que, na peça, "a dimensão maior do papel é expressar que apesar de muita violência é possível lutar e dizer basta".
"Rendida" ao grupo
"Mas nem todos do grupo estão em situação de exclusão social", ressalva Daniela Couceiro, educadora social e psicóloga que começou por acompanhar alguns elementos em projetos anteriores de inserção, e acabou também ela "rendida" ao grupo, com pessoas entre os 40 e os 55 anos. Emílio destaca a grande particularidade da técnica: "É daquelas que não ficam sentadas atrás de uma secretária". Daniela Couceiro conta que "tudo é feito com voluntariado" e que "à exceção do espaço, cedido pela Junta do Bonfim, a companhia não tem qualquer apoio, mas devia ter". E explicou: "É verdade que estamos perante um grupo de semiatores, mas o objetivo é que o projeto cresça".
Fátima, 53 anos, ingressou no grupo este mês. É funcionária pública na área da Gestão e Recursos Humanos e tem "uma vida o mais normal possível". Mas sentiu que lhe "faltava alguma coisa" que a fizesse "encontrar mais" consigo própria. Na bagagem trouxe "um curso de formação em teatro".
Enquanto assiste a um dos ensaios, Patrícia Santiago, assistente social da Betel, acalenta a intenção de que a peça sirva de "inspiração" aos utentes da instituição, de forma a "acreditarem que é possível recomeçar".
Pormenores
Como tudo começou
"É!" foi o espetáculo que concluiu o projeto SOmOS, trabalho com diferentes grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade social, promovido pela Câmara do Porto, no âmbito do programa Abordagem Integrada para a Inclusão Social.
Apresentação
No sábado, às 15.30 horas, a peça "É!" apresenta-se na cafetaria "Chá com Afetos", projeto da Betel, situada na Rua Antero de Quental, n.º 240, no Porto. A lotação da sala rondará os 50 lugares. Como não se paga bilhete, o público poderá contribuir com o valor que desejar. A receita angariada reverterá a favor da Betel e das suas atividades de apoio à integração social.