Manuel, 54 anos, saiu da rua, passou por um processo de reabilitação e "foi devolvido à sociedade". Está a viver numa casa de autonomização.
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Já foram em maior número, mas ainda assim os que existem geram indignação na sociedade que se diz solidária e igualitária. Todas os dias, um total de 140 pessoas pernoitam nas ruas da cidade. A Câmara do Porto criou no ano passado o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) como resposta da cidade à estratégia nacional para integração das pessoas em situação sem-abrigo e os resultados são considerados positivos. Desde janeiro, menos 136 pessoas vivem na rua. Um deles é Manuel, que depois de passar por um programa de reabilitação, tem uma vida estável e já vive num apartamento.
Manuel (nome fictício) tem 54 anos e desde os 27 que vive na rua. Tinha sido pai dois anos antes, quando começou a consumir heroína. Perdeu o emprego em contabilidade, assim como a família. A mãe e os irmãos ficaram para trás.
Ultimamente, dormia numa entrada da Rua da Restauração. Esteve ali anos. "Tive a sorte de conhecer um bom médico do Hospital de Santo António, da área da infeciologia, que me ajudou", conta Manuel. Quando foi internado, estava às portas da morte, infetado com HIV, uma pneumonia, com tuberculose, uma anemia e duas hepatites. Após o tratamento, ofereceram-lhe a oportunidade de "mudar de vida" e de ficar no Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano, um dos principais recursos do NIPSA. "Estive aqui sete meses e hoje, apesar de alguns problemas de saúde, estou reabilitado e pronto para dar outro rumo à vida", conta ao JN.
Vive num apartamento de autonomização da Santa Casa da Misericórdia do Porto, e do Estado recebe o rendimento mínimo. Continua a frequentar o Joaquim Urbano, onde tem amigos e ainda toma metadona. "Subiu a autoestima, mas psicologicamente acho que ainda não estou preparado para largar", acrescenta Manuel.
"Sem teto e não sem-abrigo"
"Este é um trabalho de reabilitação e de autonomia, devolvendo as pessoas à sociedade", explica o vereador da Coesão Social, Fernando Paulo. O tema dos sem-abrigo gera todos os anos ondas de solidariedade sobretudo durante o inverno. Todos se mostram sensíveis e as autoridades montam contingentes para o frio. Mas de verão o problema subsiste. É detetável pelo cheiro a urina nas praças, pelos cantos de ruas e vielas, pelas roupas abandonadas em contentores ou junto a fontanários, após um banho rápido.
Todo o trabalho feito pela autarquia no diagnóstico, planeamento e na ativação das redes de resposta no âmbito dos sem-abrigo integra pela primeira vez a Estratégia Municipal de Habitação, cuja síntese foi apresentada no início do mês passado por Rui Moreira, durante uma reunião do executivo. As pessoas sem teto passam a integrar o grupo de pessoas que na cidade vivem em "situações de habitação indigna".
"Neste caso, a nossa preocupação são as pessoas sem teto, as que vivem nas ruas. Atualmente, o conceito de sem-abrigo engloba não só as sem teto, mas também as pessoas que ficaram sem casa mas que residem em quartos, pensões ou albergues, e que no Porto são um total de 560", explica Fernando Paulo, que gostaria que toda a estratégia montada pela autarquia portuense fosse alargada a outros municípios do Grande Porto e concelhos de origem de quase metade dos "sem-teto".
Direito à cidade
"Aqui passam despercebidos, recebem mais apoios sociais, mais ajuda por parte de residentes e consomem substância psicoativas no espaço público", explica o vereador. Fazem-no em casas abandonadas ou em tendas. Existem focos na zona histórica, mas também na zona ocidental (Campo Alegre, Pinheiro Torres, Aleixo, Pasteleira) e na zona oriental da cidade. "Estamos a trabalhar na área da prevenção e a nossa preocupação é estancar a situação com estratégias para evitar que estas pessoas cheguem a uma situação limite", acrescenta o vereador.
Todos os casos estão sinalizados pelas equipas de rua. "Todos os cidadãos têm direito à cidade, acompanhados num trabalho em rede e por vezes surgem focos de tensão". O consumo de droga e álcool, a par do desequilíbrio mental "sempre acompanhado", complica a reabilitação e favorece a reincidência.
Para além da intervenção na área do acompanhamento social, do emprego e saúde, encontrar habitação é fundamental. "Levanta a autoestima" e cria sentido de responsabilidade. Com a Santa Casa da Misericórdia do Porto, o NPISA dá alojamento temporário e devolve à comunidade uma pessoa reabilitada. Em outubro, vai abrir o terceiro restaurante solidário, desta vez em Massarelos (há um na Batalha e outro no Joaquim Urbano), com um serviço de confeção assegurado pelos SAOM-Serviços de Assistência Organizações de Maria.
Pelo país
Sem teto e sem casa
Os dados mais recentes apontam para a existência de 3396 pessoas sem teto ou sem casa, das quais 1443 vivem na rua, em espaços públicos, abrigos de emergência ou locais precários, e 1953 pessoas sem casa, isto é, a viver em equipamentos de pernoita limitados e temporários.
Estratégia nacional
Em 25 de julho de 2017, foi criada a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2017-2023 (ENIPSSA 2017-2023), com o objetivo de definir uma abordagem de prevenção e intervenção, centrada nos sem-abrigo, com três eixos de ação.
Lisboa com 45% do total
Segundo o levantamento da ENIPSSA, publicado em finais de 2018, cerca de 45% do total das pessoas sem teto foram identificadas na Área Metropolitana de Lisboa (AML), com 644 pessoas. A Área Metropolitana do Porto, surgia com 286 pessoas, das quais 174 no concelho do Porto.
Desígnio de Marcelo
O presidente da República mantém a meta de 2023 para a integração de sem-abrigo, sendo esse "um objetivo nacional". Em dezembro, na ceia de Natal com sem-abrigos do Porto, Marcelo Rebelo de Sousa salientou que caso não seja na altura presidente, continuará "como cidadão a trabalhar nisso".
44% de fora da cidade
Quase metade das pessoas em situação de sem teto não são naturais da cidade do Porto, mas procuram a cidade por nela encontraram anonimato, ajudas sociais e por estarem mais perto de locais onde podem adquirir drogas.
69% consomem drogas e álcool
As principais causas identificadas para a situação de sem abrigo são a dependência do álcool ou de substâncias psicoativas (69%) e a ausência de suporte familiar (57%). Em muitos casos são eles a abandonar as famílias.
População adulta
Os levantamentos apontam para uma população que vive na rua pouco jovem. De acordo com a autarquia, 64% das pessoas nestas situações têm idade entre os 45 e os 64 anos. Destes, 84% são homens e 72% recebem RSI.
Há mais de duas mil famílias portuenses em situação "indigna"
O Porto tem 2093 famílias a viver em "situação indigna". O levantamento foi realizado no âmbito da Estratégia Local de Habitação, com o qual a autarquia quer encontrar soluções para esse grupo de pessoas onde estão incluídas famílias em insolvência, vítimas de violência doméstica e pessoas em situação sem-abrigo.
O documento, que deverá estar concluído para ser apreciado pelos órgãos autárquicos em setembro, aponta um quadro sombrio sobre as condições em que vivem muitos portuenses. De referir que 63% das mais de duas mil famílias a viverem em situações degradantes residem em "ilhas". E continua a ser difícil encontrar uma solução de realojamento.
O mercado livre tem um arrendamento inflacionado devido à especulação imobiliária decorrente da pressão turística e a Câmara do Porto vai dando resposta no mercado habitacional camarário com poucas casas vagas para realojamentos.
"Temos 1093 famílias que aguardam casa na Domus, algumas delas pertencentes ao grupo das que se encontram em situação indigna", afirma o vereador Fernando Paulo.
Mesmo assim, a Câmara vai mantendo a capacidade de entrega de uma casa por dia. Os realojamentos são feitos após cada desocupação e realizados projeto e obras de requalificação. As necessidades obrigam a um processo de aceleração. A autarquia é proprietária de 13 mil casas e tem 1100 pedidos registados na Domus Social. A média de entrega é de 220 casas/ano, mas a autarquia quer aumentar o ritmo. Contudo, os realojamentos apressados das 270 pessoas que viviam no Bairro do Aleixo vieram complicar o processo.
Neste momento, há 59 casas no Centro Histórico, remodeladas para acolher famílias em lista de espera. Depois para entrega há mais de 20 no Bairro Rainha D. Leonor, 14 no S. João de Deus, 15 na Maceda, 46 nas Eirinhas (construída com o Fundo do Aleixo) e 30 em Pereiró, no antigo Bairro dos CTT, além das sete casas na ilha de Cortes e quatro na ilha do Bonjardim.
A aposta passa também pelo arrendamento acessível ao abrigo de programas como o Porto Solidário que tem 1,100 milhões de euros de apoio à renda.