Reformados têm 90 dias para devolver casas de função. Processo nacional começou em Leiria e Alcoentre.
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Antigos funcionários das cadeias, a residir em casas de função, estão a ser notificados pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) para devolverem as habitações. O processo decorre já em Leiria e Alcoentre, mas irá abranger todos os bairros prisionais e residências de função alocadas aos centros educativos.
Ministério alega lei
Ao JN o Ministério da Justiça justifica a decisão com a "obrigação legal" de restituição das habitações, devido à situação de aposentação dos moradores. Segundo a tutela, as notificações decorrem de "uma auditoria realizada pela Inspeção-Geral dos Serviços de Justiça", que motivou "um levantamento do universo das casas de função afetas aos estabelecimentos prisionais e aos centros educativos". Desse trabalho, resultou a identificação de "várias situações de desconformidade face ao quadro legal vigente", tendo sido iniciado o processo de notificação dos ocupantes "em situação irregular". Na carta enviada aos moradores, a DGRSP dá 90 dias para a entrega das casas, sob pena de "instauração de competente procedimento de despejo".
Atenção a casos sociais
No esclarecimento enviado ao JN, o Ministério da Justiça assegura que a DGRSP terá em conta as situações de "maior sensibilidade social e humana, legitimamente reconhecidos como merecendo proteção". De acordo com a tutela, esses casos serão comunicadas ao IGFEJ, o organismo que faz a gestão do património imobiliário afeto à Justiça, que "decidirá pela eventual manutenção da situação ou pela inserção dos ocupantes em programas públicos de apoio social e realojamento".
Em relação ao destino a dar às habitações que forem restituídas, o Ministério adianta que, "se reunirem condições de habitabilidade", integrarão os próximos procedimentos concursais de atribuição de casas de função.
Por esclarecer fica a suspeita de moradores já notificados relativa à intenção de venda de alguns imóveis. Também não foi possível apurar o que pretende fazer a tutela às dezenas de casas de função que se encontram devolutas. Só em Leiria são perto de 30.
No âmbito deste processo, estão também a ser notificados moradores que, tendo casa atribuída, não a estão a utilizar, o que, segundo um dos editais publicados no site da DGRSP, "constitui renúncia à ocupação do imóvel e torna exigível a desocupação e entrega da habitação".
Pormenores
Histórico
A atribuição da casa de função faz-se "com caráter precário" e dela podem beneficiar funcionários em exercício de funções, nomeadamente, guardas prisionais e certos assistentes técnicos, como cozinheiros, eletricistas e auxiliares de ação médica. A construção das casas decorreu da reforma prisional de 1936.
Subsídio de renda
Como nem todas as cadeias foram dotadas de casas de função, o decreto-lei 140-B/86 veio reconhecer o direito a um subsídio de renda aos funcionários cuja legislação definisse como obrigatória a sua residência junto dos estabelecimentos prisionais.
Reportagem
Com a nossa idade, para onde vamos?
A ternura com que trata do jardim esconde o sobressalto em que Lurdes Pires tem vivido desde que o marido foi notificado para deixar a casa onde residem há quase três décadas, no bairro da antiga prisão-escola de Leiria. José Pires, de 76 anos, é um dos 14 antigos funcionários do Estabelecimento Prisional de Leiria Jovem com ordem para restituírem, até meados de julho, a casa de função que lhe está atribuída. Todos reformados, a maioria com "mais de 70 e de 80 anos", os moradores notificados alegam que permaneceram nas habitações após a reforma "com autorização" e temem pelo seu futuro. "Como a nossa idade, para onde vamos com as malas às costas?", pergunta, em jeito de desabafo, Lurdes Pires. De olhos fixos na casa, o marido vai enumerando as melhorais que fez. "Pus aquecimento e caixilharias, pintei, arranjei as casas de banho e o chão... Gastei aqui muito dinheiro e agora, aos 76 anos, dizem-me que tenho de sair", lamenta, emocionado.
O mesmo inconformismo é partilhado por Licínio Rama. Antigo subchefe, reformado desde 2014, sente-se numa "encruzilhada". A viver com um filho menor e ainda a pagar o empréstimo que contraiu para fazer obras na casa, não sabe o que fazer à vida. Diz "não ter outro sítio para viver", nem condições para procurar a alternativa. "É nessa situação que está a maior parte das pessoas que aqui reside", aponta, alegando que, se os moradores reformados não tivessem permanecido nas casas, estas "estariam a cair como estão tantas no bairro".
"Zelámos pelas casas e até os buracos da estrada tapámos com alcatrão", reforça José Pires. Ao lado, a mulher lembra os tempos em que este era "um bairro bonito", com muros caiados, as casas "todas habitadas" e os jardins "bem tratados". Dessa época sobram alguns quintais cuidados como o seu, onde florescem canteiros. Na parte devoluta, há hortas a crescer entre casas em ruínas e despojos do campo de jogos e do parque infantil. Também os edifícios da antiga cantina e mercearia estão ao abandono. "O bairro é uma sombra do que foi. Se nos formos embora, ficará pior", antevê Licínio.