A evolução da "sala de visitas da cidade" pelos olhos de quem nela trabalha há muitos anos. Nem todas as mudanças agradaram.
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Os sucessivos esquissos de que reza a história materializaram-se, por fim, há um século. A Avenida dos Aliados, sonhada pelos intelectuais e pelos megalómanos nasceu para ser a "boulevard" portuense. O tempo acabou por fazer dela rainha. Pelos bons e pelos maus motivos. No seu regaço amparou crises e revoluções. E serviu de palco a tantas e diversas comemorações e manifestações. Por tudo isso é, e há de sempre ser, nas palavras de quem nela cresceu e trabalhou, "a sala de visitas da cidade". Uma sala de visitas com várias vidas: da banca aos jornais, passando, agora, pela hotelaria.
Farmácia: 51 anos. "Ai Jesus, tanto tempo?"
Eva Coelho não quer falar, não quer aparecer. Fecha a cara, abana a cabeça, mas acaba por ceder. É que se os Aliados completaram 100 anos em fevereiro, ela, que tem 72, é técnica na Farmácia Birra, na Praça da Liberdade, no Porto, vai para 51. "Ai Jesus! Tanto tempo?" Num ápice, solta as memórias e recorda as "guerras" antes do 25 de Abril. "Havia de ver a polícia a carregar nos que eram contra o regime". Mas depois da queda da ditadura vieram outras manifestações. "Mais bonitas". O "1º de Maio", os "aniversários da revolução". "A vinda do Papa também foi fantástica". E mais? "Com o tempo foi tudo mudando. Desde que cá estou, os Aliados já passaram por três vidas".
Na primeira, havia flores, jardins e bancos. "As crianças juntavam-se a brincar, as pessoas a passear. Ao fim de semana vinham para aqui dar milho às pombinhas e os ardinas andavam pela rua a vender jornais". A segunda foi quando o projeto dos arquitetos Siza Vieira e Souto Moura mudou a cor da avenida e das praças. "Foi um trabalho com o qual não concordo". A terceira é esta. "Que é ótima, principalmente para a farmácia. Só é pena ver estas casas todas a fecharem e abrirem só hotéis". À parte disso, gosta muito de ali estar. "Passei a vida inteira aqui".
Escritório: "Vi muita coisa acontecer"
Foi ontem. Mas, feitas bem as contas, já passaram 40 anos desde o dia em que Fernando Mizarela e Maria de Lurdes receberam aquele telefonema. "Há um escritório nos Aliados que talvez lhes possa interessar", disseram do outro lado da linha. De Londres para o primeiro andar do número 123 da Praça da Liberdade veio uma cópia da Magna Carta e a certeza de uma nova etapa de vida. Em setembro de 1976, começaram uma rotina que foram moldando à passagem dos tempos. Advogado e secretária, equipa de toda uma vida, começaram por atravessar os Aliados "com a máquina de escrever na mão". E foi da janela do escritório, onde ainda hoje trabalham, que Maria de Lurdes testemunhou os dias: "Vi muita coisa acontecer. Grande parte dos cafés fecharam. Os negócios foram mudando. Os jardins e as casas de banho, antigas e lindas, desapareceram".
E no meio do correr da história "até queriam mudar a estátua de D. Pedro IV do sítio, para que o cavalo estivesse voltado para a Câmara, mas não aconteceu. E ainda bem!", acrescenta, com firmeza, o advogado. Das muitas vezes que viram a avenida encher-se de gente houve uma que lhes ficou no coração. "Em 1999 toda a gente saiu à rua para fazer um minuto de silêncio por causa do massacre de Timor. Foi arrepiante", recorda o jurista.
Café: "God save the Queen. God save you"
Em 1982, quando o pai comprou o café Guarany, Fernando Barrias, com 18 anos, ainda estudava. "Comecei a trabalhar em part-time e só depois a tempo inteiro". Já lá vão 34 anos. Hoje, o sócio-gerente de uma das casas mais emblemáticas da cidade não esconde o orgulho de representar um dos "cafés sobreviventes dos Aliados". Naquela altura, "a febre dos bancos tomou o lugar de muitos espaços comerciais. Hoje vive-se o contrário, os bancos estão a dar lugar, mas desta vez a hotéis". "Ainda há muitos prédios vazios e lojas fechadas. Mas eu prevejo que isto vai mudar. Os hotéis vão trazer mais gente para a avenida". Moradores nos Aliados é que não conhece nenhum. "Foram as vítimas do progresso". Já momentos que o marcaram não tem dificuldade em enumerar: os festejos do F.C. Porto, o rali... ou quando a rainha Isabel II de Inglaterra visitou o Porto. "Lembro-me dela passar aqui nos Aliados e de falar com ela. Disse-lhe: "God save the queen" e ela respondeu-me: "God save you". Fiquei muito contente por ela ter-me ouvido", sorri Fernando Barrias. "Esta avenida será sempre a sala de visitas da cidade", sentencia.
Casa da Sorte: "Era tudo muito bonito, até eu"
"Ora, eu vim trabalhar para a Casa da Sorte há...31 anos". Depois dos cálculos, Fernando Barbeita afina as memórias. Mas adianta logo: "Difícil é dizer o que não mudou. No início olhava lá para fora e via os elétricos a passar. Muita gente vinha fazer os depósitos dos certificados de aforro ao Banco de Portugal. Aqui ao lado tínhamos o Banco Nacional Ultramarino, que depois passou a ser a Caixa Geral de Depósitos e que agora não é nada, porque fechou". Como fechou o café Imperial, onde agora está o McDonald"s. Foram muitas as alterações. "Tantas", que o funcionário de 67 anos até suspira. Acha que era tudo melhor nessa altura? "Era tudo bonito nesse tempo. Até eu, porque era mais novo", brinca. Quanto à atual placa central "de que quase ninguém gosta", considera "estar mais funcional para os eventos da cidade". Mas também considera que antes das obras "havia mais vida". "E não eram turistas, eram os portuenses". Como nas tardes de domingo. "Vinha tudo saber os resultados dos jogos de futebol para a porta do jornal O Comércio do Porto". Com fotos a preto e branco no balcão encolhe os ombros, sem deixar de sorrir: "A vida mudou um bocado".
Florista: "Vê aquela árvore? Vi-a crescer"
Há 16 anos que Maria José Rodrigues estende os vasos e as flores à entrada da sua loja, na Praça da Liberdade, para chamar os clientes. Eles, que "já foram muitos", são agora substituídos por "turistas com mapas" que não lhe compram flores, mas pedem informações. "Tento perceber o que querem e, se puder, vou até ali à frente e aponto-lhes para a catedral". Dos "Aliados antigos" lembra os jardins. "Até chorei quando fizeram as obras". Agarrou-se então às alegrias do dia a dia. Como os passarinhos que a visitam. "Sabem que eu tenho um saco de migalhas para eles". Da porta, aponta para o passeio. "Está a ver aquela árvore ali? Vi-a crescer. Foi plantada no dia dos namorados, anotei isso em qualquer sítio". Foi há oito anos, talvez. "É linda. Já vinha grandinha, mas ainda engrossou mais". "Gosto muito desta avenida. Pena que o negócio morreu".