Entidades responsáveis pela unidade móvel de consumo assistido em Lisboa não conseguem manter atividade já a partir de sexta-feira. SICAD garante que concurso para atribuição de verbas "decorre dentro dos prazos legais previstos".
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Dezoito anos depois de se deixar de considerar crime o consumo de drogas, Portugal - o primeiro país europeu a dar este passo - teve a primeira sala móvel de consumo assistido em 2019. Contudo, três anos depois de levar mais segurança aos toxicodependentes de quatro freguesias de Lisboa, a Médicos do Mundo (MdM) e o Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT), que gerem este equipamento, vão interromper o seu funcionamento a partir de sexta-feira "no seguimento da falta de decisão sobre o financiamento desta resposta", avançam ao JN as direções das duas organizações.
Há quase dois meses que estas instituições mantêm o Programa de Consumo Vigiado Móvel "com base em fundos próprios", mas "vão deixar de ter condições" para o fazer. Segundo a Médicos do MdM e o GAT, "o financiamento que, nos últimos três anos, esteve a cargo da Câmara de Lisboa, terminou no final do ano passado e, neste momento, decorre um concurso para o financiamento pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD)", como estava previsto desde o início.
3047 consumos foram feitos entre 2019 e 2020 na sala móvel. Os principais são de heroína, cocaína e benzodiazepinas. Doze overdoses (com drogas e álcool) foram evitadas graças à intervenção da equipa da sala móvel de consumo assistido.
"Nos dois primeiros meses de 2022, o programa ainda contou com uma extensão de financiamento por parte da Câmara de Lisboa, de forma a acautelar a abertura e decisão do concurso. A partir de 8 de março, mantendo-se a falta de decisão sobre o apoio financeiro, as duas entidades resolveram manter o programa em funcionamento, com base em fundos próprios, por mais 60 dias", explicam.
Soluções provisórias que não poderão ser mais estendidas por estas organizações que acrescentam que "mesmo que a interrupção seja curta - como esperam -, deveriam ter sido acauteladas as diligências necessárias a uma atempada transição de financiamentos".
A Médicos do Mundo e o GAT lembram que foi feito "um percurso de aprendizagem com utentes, parceiros e comunidades locais, que lamentam que agora venha a ser interrompido". Após um trabalho de três anos (ler reportagem ao lado), receiam que a situação possa "gerar um acréscimo de vulnerabilidade e instabilidade" nos consumidores.
Concurso cumpre prazos
O diretor do SICAD, João Goulão, diz ao JN que "o concurso decorre dentro dos prazos legais previstos, não se tendo verificado desvios nos tempos procedimentais aí preconizados" e que "será concluído no mais breve espaço de tempo possível". O concurso, esclarece ainda, "foi iniciado pelo SICAD assim que estiveram reunidas as condições legais para o efeito". "Aguardo a conclusão dos trabalhos da Comissão de Seleção, com os quais não posso nem devo interferir".
Portugal demorou quase duas décadas a tirar do papel para o terreno as salas de consumo assistido, previstas na lei desde 2001. Depois de arrancar a primeira, abriu, no ano passado, a segunda sala (esta fixa), em Lisboa. Apesar da polémica e dos atrasos, está prevista também para breve uma para o bairro da Pasteleira, no Porto.
Reportagem
Gosto de falar sobre assuntos além de drogas
Num descampado, nas traseiras do bairro Carlos Botelho, na freguesia do Beato, as mais de 30 seringas espalhadas pelo chão mostram que por ali já passaram dezenas de toxicodependentes. É uma das zonas de Lisboa onde há maior concentração e é por isso que a unidade móvel de consumo vigiado pára ali perto há três anos. André, nome fictício, 48 anos, assim que acaba de injetar heroína, desce a encosta para ir buscar novas seringas. "Não costumo consumir dentro da carrinha porque me sinto muito fechado", explica.
O que mais gosta nesta resposta, além do material esterilizado, "é ter alguém com quem conversar", diz, referindo-se também ao apoio psicológico. "Gosto de falar sobre outros assuntos além de drogas". Começou a consumir com 18 anos e, após várias intervenções terapêuticas, esteve três anos sem tocar em drogas, mas teve uma recaída.
"Agora é difícil sair"
Outro utente, ucraniano há 22 anos em Portugal, já viu dois amigos morrerem de overdose. Hoje, sabe que poderia ter sido diferente. "Esta unidade faz muita falta aqui para ajudar nesses casos. E o apoio psicológico é fundamental", diz, após sair da carrinha onde esteve a consumir heroína e cocaína. Tem 50 anos e é viciado desde os 14. "Foi uma estupidez, mas agora é muito difícil sair", reconhece, como outros com quem o JN falou.
Um pouco antes, na primeira paragem na Penha de França, outro utente, que quando não vai ali fuma em latas de refrigerantes, foi buscar cachimbos. Não há consumos fumados dentro da carrinha e por isso, nestes casos, fornecem apenas o material.
A unidade móvel circula por Arroios, Areeiro, Penha de França e Beato, desde 2019, com o principal objetivo de reduzir os danos que um consumo injetado pode causar, como infeções ou abcessos, e explicá-los. "Sentimos um aumento do consumo de benzodiazepinas na pandemia, um medicamento que é triturado para ser injetado. Tem maiores danos que a heroína porque os medicamentos não são para serem injetados, a toxicidade é muito maior", diz Joana Pires, cocoordenadora e enfermeira na unidade que esclarece estes e outros perigos aos 294 inscritos.
"Boa aceitação"
Para Adriana Curado, cocoordenadora da sala de consumo móvel e psicóloga, ao final de três anos "há hoje uma boa aceitação desta intervenção", para a qual "foi fundamental o apoio dos bairros". "Os moradores vinham à carrinha para conhecerem o que fazíamos", complementa Joana Pires, enquanto mostra um medicamento em forma de spray nasal que evita overdoses, outro dos objetivos.
"Fomos os primeiros a distribuir naloxona cá, que já existia noutros países. A maior parte das overdoses acontece quando as equipas não estão presentes. Assim podem socorrer-se a eles próprios rapidamente", explica.
Redução do estigma
Adriana Curado acrescenta que a sala de consumo móvel permitiu a "redução do estigma" nos bairros onde estão, o que "teve impacto na saúde" dos utentes. "Quando as pessoas estão muito estigmatizadas fogem dos serviços", diz.
Ângela Leite, técnica de Redução de Danos, salienta que o objetivo da sala não é "incentivá-los a deixar de consumir". "Reduzimos danos. Se querem continuar, damos condições higiénicas para o fazer, se querem ser acompanhados, encaminhamos", conclui.