O JN visitou as barbearias tradicionais do Porto e encontrou aquela que pode ser a mais antiga do país. Apesar da idade, proprietários recusam largar a tesoura e a navalha
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O JN foi ao barbeiro. Assim, sem tirar nem pôr, visitámos as casas tradicionais da cidade do Porto e descobrimos uma que, muito provavelmente, é a mais antiga do país. Mas já lá iremos. Conversámos com os profissionais e até ficámos a saber que num desses estabelecimentos há versos e rimas que se soltam à medida que a tesoura avança sobre o cabelo do cliente. Umas mais preservadas do que outras, estas barbearias são lugares com histórias escritas em milhares de gestos repetidos por mãos ainda firmes.
Tinoco: art déco ainda preservada
Era dia de jogo no Dragão quando Sigbjørn Bystøl entrou na Tinoco pela primeira vez. Sócio do F. C. Porto e proprietário de uma casa no Pinhão, o cliente norueguês estreou-se na glamorosa barbearia com uma promessa: "Se gostar, volto". Não chegámos a saber se o corte foi do seu agrado, mas não seria preciso fazer perguntas quanto à impressão que teve do espaço.
Com origem provável nos finais do século XIX, na antiga Rua de Santo António, a barbearia instalou-se em Sá da Bandeira em 1929. E assim revelou toda a influência que o arquiteto Manuel Marques absorveu em Paris: a estética art déco, que ainda hoje se mantém.
A gerir o negócio há 20 anos, o portuense João Vilas sorri com os olhos à medida que enumera os elementos que fazem da Tinoco uma casa única: as molduras em bronze, os espelhos de cristal, o mármore a espreitar por todo o lado, a cadeira A. J. Rollert, a pastilha francesa no chão.
Estando num local tão privilegiado como a Baixa da cidade, não admira que qualquer pessoa que passe à porta seja um potencial cliente. "Quanto mais não seja, para entrar e tirar fotografias", diz João, dantes fisioterapeuta e agora barbeiro. Tem 57 anos e muito carinho pela sua Tinoco, a que chama "a nossa velhinha". Mais de 80% dos clientes são turistas.
Garrett: barbeiro sem pressas
Na Rua de Ramalho Ortigão, a escassos metros dos Paços do Concelho, conhecemos um homem que não trabalha sob pressão. Os 85 anos de Acácio Branco permitem-lhe certas liberdades, mesmo que na cadeira da Barbearia Garrett esteja sentada uma figura pública. Pela sua tesoura passaram vários presidentes da Câmara, mas é Rui Moreira quem merece os melhores elogios: "É o mais simpático, conversa com toda a gente".
Natural de Cinfães, começou na arte aos 12 anos. "Os pais punham os filhos a aprender uma profissão e a mim tocou-me isto", recorda o homem que foi trabalhar para a Barbearia Garrett em 1958, um ano depois da abertura. É o rosto da casa desde 1979.
Quem ali entra fica a conhecer um fervoroso adepto do F. C. Porto, a julgar pela quantidade de referências, incluindo uma fotografia do plantel dos tempos de Pedroto. Acácio não esconde que às vezes cobra mais pelo corte. "Levo ao estrangeiro mais caro, porque ele não pergunta o preço", justifica. E diz que continua no ativo por causa da comunicação: "Se estivesse em casa, já tinha morrido".
Invicta: tesoura e poesia de mãos dadas
"A cadeira do barbeiro/É um centro cultural/Fala-se do Mundo inteiro/Fala-se do bem e do mal". Consoante fala, consoante rima. Aos 77 anos, assim é José Pinto, que divide com Francisco Moreira a gestão da Barbearia Invicta, fundada em 1968 na Praça de Carlos Alberto. O primeiro está lá praticamente desde sempre, o segundo chegou dez anos depois.
Nascido em Penafiel, Francisco tem 71 anos e era também um miúdo quando lhe foi traçado o destino: "Aprendi com o meu pai, voluntariamente... à força. Queria jogar à bola e o meu pai não me deixava", relata, para depois nos mostrar objetos de antanho exibidos numa vitrina. Enquanto isso, o colega de Baião vai versejando e cortando o cabelo a um cliente de sempre, o antigo ministro do Trabalho Amândio de Azevedo.
Do leque aqui retratado, a Invicta está entre as barbearias que ainda mantêm empregados. Ainda assim, a equipa que outrora teve dez pessoas está agora reduzida a quatro.
Veneza: homens iam lá arranjar as unhas
Pedro de Almeida nasceu em Resende há 80 anos, mais dez do que a cadeira em que está sentado quando explica como usava o assentador da navalha. Agora que as lâminas são descartáveis e o pó de sabão já não se usa, o responsável pelo Salão Veneza diz-nos que o prédio foi vendido e que o atual contrato de arrendamento só dura mais quatro anos. "Não sei se isto vai continuar", desabafa.
Começou como barbeiro aos fins de semana, lá na terra. E conta-nos que, quando foi para a Veneza, já na Rua Elísio de Melo (a barbearia foi fundada na Rua do Almada, em 1953 ou 54), era muito comum os homens irem lá arranjar as unhas.
Quando perguntamos se o barbeiro também tem um pouco de psicólogo, é o ajudante, Manuel Monteiro, quem revela que, por vezes, nem as famílias sabem tanto sobre a vida privada dos clientes.
Lapa: antiguidade não envaidece José
Há um segredo muito bem guardado no número 56 da Rua da Lapa. Mal se entra, o discreto papel que surge à esquerda, emoldurado, não deixa margem para dúvidas: a 24 de julho de 1965, a União de Grémios dos Comerciantes do Porto atribuía ao estabelecimento um diploma pelos "100 anos a bem do negócio tripeiro".
Ou seja, o Salão da Lapa abriu em 1865 e manteve-se, de forma ininterrupta, no mesmo local. Isso confere-lhe o provável título de barbearia mais antiga do país, por comparação à que tem vindo a ser descrita como tal, a Campos, em Lisboa, que foi fundada em 1886.
Uma honra que não envaidece José Moreira. Agora com 84 anos, o proprietário não perde tempo a falar do assunto, mas garante que o diploma já lá estava quando chegou à casa, em 1966. Nascido em Baião, foi aos 18 anos que começou a trabalhar na área, com um primo, e pouco depois ganhou um certo entusiasmo quando apareceu o chamado corte à francesa. "Por acaso eu tinha jeito para aquilo e safei-me, desenrasquei-me muito bem", lembra.
Um letreiro colado num espelho avisa que ali não se fazem barbas. José impressiona-se de cada vez que aparece uma pinta de sangue, mas abre uma exceção quando o cliente já não tem firmeza de mão suficiente para uma lâmina, como é o caso do amigo Daniel Santos. Assim sendo, não tem outro remédio: "Faço o sacrifício".
Curiosidades
Há um pequeno museu na Barbearia Invicta, com ofertas de clientes e objetos, alguns de origem, já fora de uso. Entre eles, vimos um aparelho de infravermelhos, para tratamento do couro cabeludo.
Manuel Martins , antigo bispo de Setúbal, foi um incentivo para o dono do Salão da Lapa: "Enquanto puder trabalhar, você trabalhe sempre".
Quando esteve à frente da Diocese do Porto, Manuel Clemente, atual cardeal-patriarca de Lisboa, cortava o cabelo na Tinoco.
Em Resende como noutras terras, os barbeiros não tinham um espaço para trabalhar: "Íamos a casa das pessoas", conta Pedro de Almeida.
Livro sobre a profissão
As histórias não se contam apenas nas cadeiras dos barbeiros. Também ele a trabalhar na área, apesar de já estar reformado, António Teixeira Sousa dedicou muitos e bons anos à pesquisa até dar à estampa um livro sobre a profissão, em 2019, livro esse que em breve será editado também em francês.
Já a preparar um novo trabalho - que vai dedicar às barbearias antigas do Porto, com incursões por Lisboa e Resende -, o autor de "História do barbeiro" começa por explicar por que motivos o homem que cortava o cabelo e fazia a barba desenvolveu, em tempos imemoriais, uma atividade multifacetada, como "extrair dentes, lancetar abcessos, sangrar, entalar membros fraturados, praticar atos de pequena cirurgia".
Nestas páginas, o leitor poderá ainda encontrar curiosidades sobre o simbolismo das barbas ou conhecer barbeiros ligados a outras artes, como a música ou a pintura. Por fim, uma série de imagens de antigos instrumentos e cadeiras.
Voltemos ao próximo livro. Além do que atrás foi dito, António Teixeira Sousa irá escrever sobre barbearias já desaparecidas, como as que havia nas esquadras da Polícia.